Entrevista com Sandro di Lima (por Andrea Pita)

A . P .: Os atores do Grupo Teatro Ritual te consideram como seu primeiro mestre, por lhes apresentar - Nando tinha 16 anos e Pablo 14 - uma outra postura diante do teatro e novos autores para eles ainda desconhecidos como Eugênio Barba, Grotowski e Artaud. Você indicou seus livros e logo estes se tornaram referência para seus trabalhos. Como você vê essa influencia?

S. L.: Na escola, o professor de teatro é professor de encenação, de interpretação, de dramaturgia, de análise de texto, e de todas as linguagens complementares que fazem acontecer o espetáculo. Se você não pensa na perspectiva do espetáculo, é muito difícil você manter o interesse do adolescente e a continuidade dele no projeto. E se você não dispõe de uma fruição de fato, se você não dispõe do requinte dos espetáculos, você tem que construir uma referência, senão o aluno acaba tendo apenas as referências do que assistiu. Pra sair da teledramaturgia, da novela, ou do cinema fácil e tudo o mais, você tem que possibilitar um outro olhar pra ele, e seduzí-lo pra esse outro olhar. E você tem que se valer mesmo de algumas magias que o teatro felizmente proporciona, como os encenadores do séc XX, os trabalhos que foram feitos e mostrar pra eles que aquelas perguntas internas deles em relação às próprias angústias fazem parte da escrita de um punhado de autores e encenadores que fazem um trabalho de desvendamento humano. Então eu acho que colocar eles próximos a esses autores, o Ibsen e tudo o mais, mesmo eles sendo muito novos, dá a eles uma perspectiva de alteridade. Ter o outro, ter o teatro mesmo não como um teatro fácil, só da piada, da blag fácil, mas um teatro em que ele consegue tomar algo pra si próprio e que o faz ter vontade de responder pras outras pessoas algumas questões que estão no eixo da nossa existência e no nosso sentido de humanidade. Eu acho que eles pegaram essa fase do trabalho realizado na Escola Técnica, que era uma fase muito boa mesmo.

A . P .: Sandro, você acompanhou fases anteriores do teatro goiano, depois foi Secretário da Cultura, teve todo um movimento das leis de incentivo no país...Como você vê o Teatro Ritual hoje no cenário goiano?

S. L.: Em Goiânia eu assisti a uma trajetória de grupos da década de 70, 80. Por motivos e saturações diversas, esses grupos se esgotaram na virada do século. Grupos importantes como o Exercício, o Laboratório, o Grupo Canopus, vários grupos. E assisti ao mesmo tempo uma retomada do teatro e da dança em Goiás com novos grupos como o Ritual, o Trupicão, o Nu Escuro e outros grupos na cidade. Essa época da virada do século foi extremamente pródiga de novos grupos teatrais. No final dos anos 90 e na virada, você pode ver que tem muitos grupos com idade muito parecida, e eu tenho uma honra enorme de ter alunos em vários grupos desses e em alguns desses que eu citei. São grupos que têm uma profunda inquietação com a qualidade de busca e de pesquisa, e ao mesmo tempo uma força da continuidade que move, que alimenta essa saga íngreme, ladeira acima, escorregadia, que é sustentar um grupo de teatro em Goiânia, e sustentar com isso várias dimensões como ter um conjunto de pessoas próximas que acredita, buscar apoios e patrocínios e estabelecer uma figura jurídica do grupo, concorrer aos editais, às leis e tudo o mais. E pra você colocar no palco algo que tem capacidade de dizer pras pessoas, tem que ter nos bastidores uma estrutura de produzir material pra ser apresentado nos festivais, pra fazer circuitos e tudo o mais, ou seja, é uma empreitada de fôlego. As pessoas menos encorajadas ou que se fragilizam diante das dificuldades às vezes renunciam e aí prevalecem aquelas que têm mesmo uma musculatura, uma força de acreditar que aquilo é possível de fazer. E esses grupos, além de inovar na linguagem, mantém o teatro como uma linguagem viva e atual em Goiânia, ensejando novas pessoas, novos sonhos, a estar em cena, e a estar em cena no palco e fora do palco. Eu realmente não sei dizer qual que é o mais complexo, o mais complicado, dentro ou fora do palco, o que eu posso dizer é que um grupo como o Teatro Ritual faz parte hoje do patrimônio cultural da cidade, e é um grupo tão novo, com pessoas tão novas. Eu me lembro nos primeiros festivais “Goiânia em Cena”, do Pablo apresentando nas ruas, nas praças, nos pontos de ônibus, levando o festival pra vários lugares, então eu me lembro muito bem do grande esforço que os meninos tem, e aí quando eu falo meninos, falo também dos meninos do Trupicão, falo dos meninos do Antropos, dos meninos do Nu Escuro, porque são meus meninos, vão ser e serão sempre. Então eu acho que eu levo muito a sério, respeito muito e tenho muita admiração pelo trabalho, pela consistência e insistência, é o tipo de resistência que é bacana pra cidade.

A . P .: Você assistiu o espetáculo Travessia – Parte 1: A Partida e Travessia – Parte 2: De Tão Longe Venho Vindo, com Nando e Pablo numa experiência com o butoh, que impressão você teve desses trabalhos?

S. L.: Tive a oportunidade de assistir aos espetáculos, Travessia I e II. Foi uma grata surpresa a intensidade da busca e a qualidade da realização do espetáculo numa área tão arriscada, que é o Teatro Oriental. Muita gente boa já buscou nessa fonte tão prodigiosa e nem sempre encontrou bons resultados de palco. O Grupo Teatro Ritual cumpre com uma atuação respeitável e um fôlego exuberante um caminho árduo, íngreme e sinuoso. O resultado é de encher os olhos e demonstra uma fase muito amadurecida do grupo. No nosso contexto, onde predomina muitas vezes o teatro fácil e superficial, é muito interessante acompanhar um grupo que procura temas, linguagens e experimentações que lhes dê uma cara e construam uma identidade. Claro que se trata de uma identidade difusa e diversa, que além de estar em ebulição, estará sempre em permanente construção. Esse diálogo com o improvável faz muito bem à cidade e ao estado. O grupo teve ainda a capacidade de manter curtas temporadas dentro e fora do estado, assegurando uma longevidade ao projeto e permitindo seu aprimoramento em pleno processo de exibição. Aliás, uma característica das Artes Cênicas, que dada sua dimensão celebrativa, é capaz de se reinventar em pleno vôo.

A . P .: Que conselho você pode deixar aos atores do Grupo?

S. L.: Olha, eu não sei, não vou dar conselho não.

A . P .: Pôxa, dá conselho, já que você chama eles de meninos, você pode dar conselho...

S. L.: Ouvir mesmo a eles próprios e fazer as travessias.

Entrevista de Ilka Portela (por Andrea Pita)

A . P . :
Ilka, fala um pouco do que você faz no Teatro Ritual.

I. P. :
Tudo. (risos)

A . P . :
E mais um pouco...(risos)

I. P. : Bom, a gente tem um sistema de dividir funções no grupo. No ano passado eu tinha ficado responsável por agendar as apresentações do Ciranda da Arte. Marcava, cancelava, remarcava com os professores das modalidades, por exemplo. Esse ano eu coordenava a pessoa que cuidava da produção. Na parte de produção, eu também monto projetos com os meninos...a gente monta, manda pras leis. Agora que a gente tá sem ninguém na produção, voltou pra mim essa função de agendar apresentações. Sou atriz também, sou atriz não só produtora(risos). E nesse ano também estou puxando o treinamento. Quando entrei no grupo, geralmente quem dava os treinamentos era o Nando ou o Pablo, eles ficavam revezando entre si. Esse ano a gente tá com uma proposta diferente. Depois que a gente teve um intercâmbio com o Victor, eu e a Jô também começamos a assumir a batuta, a Jô puxou um mês de treinamento, eu tô puxando esse.

A . P . : E como é feito com os projetos?

I. P. : A gente já passou por várias fases dentro do grupo nessa parte de dividir os projetos. No início eu lembro que quando entrei não sabia montar projeto nem nada. Eu buscava orçamentos e fazia declarações. Depois os meninos foram ensinando a gente e comecei a aprender mais. A gente também começou a fazer um projetinho pessoal, com todos os requisitos de um projeto mesmo, como justificativa, metas, objetivos, estratégias de ação. Aos poucos então gente foi pegando outras funções, de por exemplo redigir mesmo um projeto. Eu geralmente pego esboços e vou montando em cima. Depois o Nando dá uma revisada, olha se precisa de alguma coisa, e aí a gente fecha.

A . P . : E como foi a criação desse projeto pessoal, tinha a ver com o seu solo?

I. P. : É que no início daquele ano a gente decidiu fazer um projeto pessoal pro ano inteiro. Lembro que no meu alguns dos objetivos eram montar um espetáculo solo e fazer um curso de inglês, porque até mesmo metas pessoais entravam dentro do projetinho. Foi meio frustrante porque poucas das metas e objetivos foram atingidos, mas ao mesmo tempo foi bom porque muitos dos objetivos que eu não consegui atingir foi porque eu alcancei outros que não estavam previstos antes. Foi frustrante, mas foi bom ao memo tempo...

A . P . : Já tinha perguntado isso pra Jô, e agora pergunto pra você, já que vocês entraram tão novas no grupo...em que você percebe que amadureceu?

I. P. : Na verdade eu vejo um amadurecimento meu, pessoal, em vários sentidos. Eu me olho no espelho e vejo outra pessoa completamente diferente...completamente! E a coisa não é só física, é mais profunda mesmo. Quando eu entrei no grupo, eu tava na minha adolescência e passando pra fase adulta. Eu tinha muitas questões, que hoje estão mais bem resolvidas. Estou mais organizada, mais equilibrada, me sinto mais madura e mais exigente também. Acho que isso acontece pelo convívio que tenho com os meninos...o Nando, por exemplo, tem uma coisa de ser perfeccionista e com a convivência, a gente vai pegando, se contaminando, assim como tem coisas da gente que eles pegam também. E aí o amadurecimento acontece a cada dia, com as trocas do que cada um tem de bagagem.

A . P . : Ilka, parece que você começou a fazer teatro com o Pablo, no Rui Barbosa, e aí depois começou a participar de uma montagem que o Nando estava fazendo no Lyceu. Em seguida passou também a participar de treinamentos diários que Nando e Pablo ofereciam. No entanto, você não participou da próxima montagem do grupo como atriz. Explica como foi acontecendo a entrada no grupo.

I. P. : Foi um embate pra mim. Quando os meninos me convidaram para fazer o espetáculo, eu lembro que eu tava na minha adolescência e com um monte de questões . Então eu travei num momento em que eu tinha que decidir ou montar o espetáculo ou não montar, ou estar no grupo ou não estar. Eu me vi diante de uma decisão a ser tomada e me senti tão fraca que desisti. Mas desiti do espetaculo, porque continuei acompanhando os meninos...as coisas da produção eu sempre perguntava em que podia ajudar. Eu tinha desistido do espetáculo inclusive porque tinha problemas também com a minha família - com relação a fazer teatro...com a minha mãe, por exemplo. Eu era muito nova , e minha mãe não tinha cortado o cordão umbilical ainda, tinha aquela coisa super protetora dos meus pais, de eu não poder dormir fora , de não chegar tarde em casa e que foi muito difícil de cortar. Então naquele momento eu não me senti preparada pra chegar nos meus pais e dizer: olha, é isso e pronto. E acho que eles também não estavam preparados pra isso. Mas continuei na produção, que foi um caminho mais tranquilo, mais orgânico de entrar no grupo, do que romper com tudo.
(A entrevista continua...)

Entrevista com Jô de Oliveira, do Grupo Teatro Ritual ( por Andrea Pita)

A.P. : Jô, como você entrou no Teatro Ritual? Como começou essa história?

J.O.: Então, começou assim...(rsrs). Na verdade não foi uma coisa oficial mesmo, ah, agora eu entrei. Foi um processo mais lento, sabe, quando eu vi eu tava, entendeu...eu comecei lá no Lyceu, fazendo aula com o Nando, eu não me lembro o ano, eu lembro que eu tinha 16 anos quando eu comecei a fazer teatro em Goiânia...foi quando eu fui pro Lyceu, e na verdade eu fui pro Lyceu justamente porque eu fiquei sabendo que lá tinha teatro, parece que era a única escola que tinha aula de teatro mesmo, que eu fiquei sabendo. Aí eu falei, eu vou pra lá.

A.P. : Você fazia teatro antes ou não?

J.O.: Eu tinha feito uma experiência e aí eu gostei demais sabe? Foi uma experiência de escola, feira de ciências, sabe? Aí eu gostei, eu falei nossa eu quero fazer teatro. Tentei montar um grupo na escola, só que o diretor não deixou, falou que ía fazer bagunça demais , não tinha espaço. Falei ah, então vou pruma escola que tem...aí eu descobri o Lyceu, eu fui com uma amiga minha né? E aí o Nando foi divulgando nas salas...eu entrei na turma. E aí eu ía fazendo as aulas...era depois da aula , depois do meio-dia, acabava a aula e aí do meio-dia às duas era a aula de teatro. Então a gente ficava lá a manhã inteira até duas horas sem comer. Se a gente levasse um lanche tudo bem, senão a gente ficava passando fome, né? Mas a gente adorava , às vezes ficava o dia inteiro lá, sabe? Chegava a galera a gente ficava lá...aí foi passando o tempo, a gente foi fazendo teatro e tal, e montou “Calabar”. Foi a primeira peça que eu montei com o Nando lá. A gente montou não lembro quando, eu tinha 17 anos, já tava no segundo ano, e eu adorei, sabe, eu falei ah, acho que eu vou fazer Artes Cênicas, porque eu descobri que tinha Artes Cênicas na Faculdade...até então eu tava em dúvida, aí montamos e apresentamos no Festival que o Teatro Ritual produzia na época, que era o Festival do Corpo Ritual na época. Foi bem na época que o Lume veio, na segunda edição, o Simi(Simioni, do grupo Lume) assistiu e aí ele gostou pra caramba. A gente apresentou lá no Teatro Goiânia, a gente ficou super assim, se achando importante(rsrs). Depois a gente fez uma temporada no Martim Cererê... tudo com o “Calabar”, e fez uma temporadinha lá no Goiânia Ouro também. Aí começaram os treinamentos do Teatro Ritual, os treinamentos do final de semana... e aí o Nando pegou e chamou a gente, a turma né? Quem quiser ir e tal, e aprofundar mais nos trabalhos que a gente faz – porque na escola era uma coisa mais básica, mais voltada pro espetáculo que a gente tava montando - então vamo que aí a gente faz um treinamento mais específico pro ator e tal, se vocês quiserem aprender. Eu falei então eu vou. Aí fui eu, a Ilka, o João Fernando, todos faziam parte da turma lá. Aí uns foram desistindo...outros ficando...outros desistindo, no final tavam eu, a Ilka e a Aline no treinamento, não sei se o Jonathan tava também. A gente ía todo sábado, treinava, fazia relatório e entregava, era toda uma coisa. E aí chegou o vestibular. A gente tava fazendo outra montagem, que era “O Santo e a Porca”. Nisso a Ilka e a Aline já tinham entrado no Teatro Ritual, se não me engano. Aí eu tava meio assim... não sei o que eu quero da minha vida...vou fazer o vestibular primeiro. Aí eu prestei, passei, fiz o segundo semestre, vi que tinha a galerinha que tinha os grupos na faculdade e pensei “nossa, o que eu vou fazer depois que sair daqui? acho que eu vou ter que arrumar um grupo”. E aí o Nando já tinha chamado pra fazer parte do Teatro Ritual. Eu fui entrando, fui participando... quando eles fizeram o terceiro festival eu participei - aquele que o Tadashi veio - fiz todas as oficinas do Festival de graça(rsrs). Fui entrando, sabe? E aí quando é fé já tava. No quarto Festival eu já tava na produção, aí participei da recepção dos atores, da montagem do espaço, e já tava mais na produção.

(a entrevista continua...)

Entrevista de Nando Rocha, fundador do Teatro Ritual(por Andrea Pita)

A . P. : Nando, qual o ideário do Teatro Ritual e como é alimentar esse ideário
sobre qual ideário o Teatro Ritual foi formado

N. R. :Pra mim, e acredito que a gente tenta estender isso pra todos os integrantes, é de criar um teatro transcendental, um teatro que transforme as pessoas de alguma forma, que ela entre numa sala de espetáculo de uma forma e saia de outro, saia transformada. Uma coisa que move muito a gente é o desejo de transcender os nossos próprios limites, as nossas deficiências, as nossas fraquezas, as nossas limitações, que possa transcendê-las, tranpô-las com o corpo e que isso de certa forma se transforme numa estética, numa forma de arte, o que pode ser conferido nos espetáculos da Trilogia Travessia, onde eu e o Pablo estamos ali lidando com várias questões pessoais, a gente tenta então universalizar e dividir essas questões através do nosso corpo, da nossa expressão, da nossa energia. Então o que a gente procura, o que nos move a continuar pesquisando é um desejo de encontrar uma nova forma de comunicação com as pessoas, uma comunicação que vá além do verbo, vá além da retórica, além do discurso pra chegar mais próximo de um contato energético, um contato mais tácito com as pessoas, que perpasse os sentidos, a energia, a fisicalidade, e através da fisicalidade chegar nesses outros canais de comunicação.

A . P. : Como você se interessou por teatro? Como tudo começou?

N. R. : Eu no início queria muito fazer cinema, era o meu sonho fazer cinema, sou um apaixonado por cinema...ainda sou um cinéfilo, um amante mesmo da sétima arte. Eu quando pequeno tinha o que, uns dez anos, eu brincava vendo - meu pai não tinha condições de comprar uma câmera - então eu olhava no espelho, olhava pelo espelho vários movimentos de câmera, angulações e tal, imaginando, brincando de cinema com um espelhinho. Com o tempo eu fui percebendo que estudar cinema era uma coisa cara e impossível de acontecer naquela época em Goiânia, eu teria que me mudar pra outra cidade, teria que haver um investimento da minha família pra eu poder morar noutra cidade, pagar um curso e aprender. Então eu fui aos poucos descobrindo a possibilidade do teatro, na escola, com alguns amigos, professores e comecei a experimentar de forma muito autodidata, sem instrução, sem saber como fazer direito. Então a gente juntava os amigos, escrevia, desde o início eu escrevia textos, os meus próprios textos, porque eu não sabia nem onde conseguir os textos teatrais...a gente escrevia o texto, ía e fazia de forma completamente amadorística na escola, e foi daí que tudo começou, essa centelha foi explodindo. Aos poucos eu fui conhecendo, eu ía nas bibliotecas, e lia um autor e outro. O primeiro foi Stanislavski, tinha livros dele aqui em Goiânia...é importante frisar que aqui em Goiânia no final da década de 80 e início da década de 90, tinha uma deficiência muito grande de informação sobre o teatro nas bibliotecas, tinha poucos livros e não tinha uma faculdade de artes cênicas aqui. Os cursos que tinham eram os cursos livres de teatro, e eram no Veiga Valle, que eu saiba, no Centro Livre de Artes - isso eu to chutando - mas eu sei que sempre tinha no Veiga Valle, e sei que tinha no Cefet, com o Sandro di Lima. Tirando isso tinham os grupos que faziam teatro, que eu não conhecia também, que fui conhecendo bem aos poucos. Logo eu conheci o Samuel Baldani, que dava aula na Católica e através dele conheci o Eduardo de Souza, que fazia parte da Casa do Teatro, e lá foi minha primeira experiência assim com aula de teatro. A gente fazia teatro intuitivamente, devia ser terrível mas era uma coisa espontânea, um menino de 12, 13, 14 anos, brincando de fazer teatro na escola, com os amigos. E logo eu comecei a estudar Stanislavski, destrinchei “A preparação do Ator”, inclusive eu desenhava meus estudos, transpunha pra desenho, porque eu gostava muito de desenhar nessa época de infância - inclusive eu achei que ía enveredar pras artes visuais, pras artes plásticas, mas uma professora no Veiga Valle me fez desistir disso também. Eu comecei a fazer aula, e a desenvolver uma técnica que ela tava ensinando e a metodologia dela era através da observação de um vaso...a gente pintava vários vasos, flores e tal, só que eu era muito impaciente, aprendia mais rápido e já fazia e queria ir pra frente, e ela não queria, queria que eu acompanhasse a turma e começou a ser um pouco autoritária, de forma que assustou e eu saí, parei de desenhar, e fui começando a brincar de fazer teatro. De lá pra cá fui estudando, estudando, aprendendo, fazendo cursos...eu lembro que a primeira oficina que eu fiz de teatro foi no Martim Cererê com o Mauri de Castro, que foi uma experiência incrível. Eu já tinha estudado exercícios de teatro em livros e já tinha tentado aplicar em mim mesmo e em colegas de teatro na escola, e aí eu ter um professor e fazer uma oficina com ele foi muito bom. Lembro que ele parecia uma pessoa mística, tinha uma técnica de pegar na gente e dar choque, e aquilo me impressionou assim, não sei como que ele faz mas ele falava “vou te dar o choque você quer?” E eu: “Vai, dá o choque”, e aí ele me dava o choque. Já foi minha primeira experiência com energia(rsrs), energia física no próprio corpo. Até hoje não sei, tenho que descobrir com o Mauri fazia isso, que eu não aprendi.

A . P.: O que em teatro te entusiasmou quando você assistiu?

N. R. : O primeiro espetáculo que eu vi, que mexeu comigo, que eu pensei é isso que eu quero fazer, foi o “Martim Cererê” do Marcos Fayad. Eu assisti no Teatro Goiânia, era uma remontagem já, porque ele montou bem antes, quando eu era bem novinho, depois ele remontou na década de 90 e eu assisti. Era um teatro físico pra mim, não sabia o que era, não conhecia esse termo, mas eram vários atores fazendo índios e não tinha uma fala...eu lembro até hoje assim de como eu me emocionei, de como eu me arrepiei, de ver aquela sequência de cenas, de como ele construiu aquilo. Os atores faziam círculos e faziam rituais de índios e tal, depois o espetáculo foi evoluindo até chegar na urbanidade, na cidade e tal, aí começavam a entrar os textos, mas a maior parte do espetáculo era assim físico, era uma representação mais visual, pelo menos foi o que ficou na minha memória, o que marcou, e eu não conhecia o Marcos Fayad, não sabia quem era, nada...devia ter 15, 16 anos e foi uma experiência assim marcante, das primeiras coisas que eu vi. Depois fui abrindo meus horizontes pra outras referências, até que surgiu o Lume, que foi completamente arrebatador pra mim. Eu lembro que lá em Campinas eu assisti um espetáculo do lado da Ana Cristina do Zabriskie, o “La Scarpetta”, que era um solo de palhaço do Ricardo Pucceti. Eu fiquei completamente arrebatado, porque era o tipo de teatro que eu queria fazer desde sempre, era mais que teatro, não sabia se devia chamar aquilo de teatro, pra mim era um ritual, próximo do que eu queria fazer. Era esse o objetivo de colocar esse nome de Teatro Ritual, pra que fosse uma celebração, um encontro transcendente, e isso eu senti mesmo com o Lume. Entre a pessoa que tão no palco e as pessoas que tão assistindo, era como se eu testemunhasse um ato xamânico, de cura de alguma forma, que resumia tudo o que eu gostaria de fazer um dia no teatro, então pra mim foi uma experiência fantástica ver pela primeira vez...depois a gente trouxe eles aqui, eu vi todos os espetáculos e o trabalho deles me encantou profundamente, deu uma inspiração enorme, sabe, pra gente, o suprassumo assim do que a gente busca. E aí depois eu vi muitas outras coisas de espetáculos de mímica, espetáculos fora daqui , né, em São Paulo, na Itália, na Alemanha a gente viu umas performances também, em Brasília a gente viu um espetáculo de mímica com um grupo que se chama Black Sky White, o espetáculo se chamava “Bertrand Toys”, “Os brinquedos de Bertrand”, que era um espetáculo um pouco sombrio, causava sensações profundas na platéia. Eu gosto disso, eu gosto de espetáculos que mexem com as sensações, provocam sensações boas ou ruins, mas que interferem em alguma coisa, que eu não assisto confortavelmente da poltrona.
(a entrevista continua...)

Entrevista com Pablo Angelino, integrante e co-fundador do Grupo Teatro Ritual (por Andrea Pita)

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A.P.: Pablo, como você começou no teatro e como foi esse momento em que você e Nando se conheceram? E a formação do Teatro Ritual?

P.A.: Eu era aluno do Lyceu, o Nando tinha uns amigos e eles começaram a fazer trabalhos com o teatro. A maioria dos trabalhos eles faziam apresentações e isso começou a fazer um burburinho na escola. Então eu já gostava de fazer teatro, já fazia teatro na escola em que eu estudava antes
e tava procurando onde tava o meio cultural, o meio artístico da escola. Então
na minha turma tinha a Tâmara, que foi uma pessoa importante nesse momento. Ela era uma amiga comum e disse ah tem o pessoal aqui na escola, o Ruber e o Nando que fazem teatro. A gente foi apresentado e eles tinham um projeto de montar um espetáculo, que falava sobre a coisa da Aids na época, e aí tinha um monte de gente envolvida. Eu achei isso uma coisa muito interessante, o texto era uma coisa muito legal, chamava-se “Pelos gritos do sangue”, escrito pelo Nando e pelo Ruber. Eu me identifiquei. Tinha a idéia de um cara contrair a doença mas ele achava que aí ele era um vampiro, idéia super-louca. Isso me seduziu, falei ótimo, achei minha turma aqui. Só que a gente começou os ensaios, tinha uma galera assim de 30 pessoas que não fazia teatro, uma zona. A galera chegava no auditório pra ensaiar e colocava o “Raimundos” e começava a dançar e trocar idéia. E aí eu pensei, ué mas e aí, cadê a coisa acontecendo? A gente ía ensaiar na casa do Miguel, que o Miguel morava perto da escola na época. Na verdade não era um ensaio, era uma celebração, era uma farra. Resultado: não saiu o espetáculo. Eu lembro até que o menino que fazia o personagem principal – teve um teste lá pra seleção do elenco e tal - e esse menino que fazia o personagem principal que era portador de aids, era portador de aids na vida real e ele falou isso. E aí ficou um clima porque ninguém tava preparado, aquela coisa, todo mundo na curtição e não sei o quê e aí o cara assume ai eu sou portador de aids . Enfim, faltou ali um método e o que era pra acontecer não aconteceu, ficou aquela coisa dos amigos se encontrando no final de semana, e aí rolou toda uma frustração, né... então eu falei não era essa galera que eu queria fazer teatro porque eles são mais a fim da curtição e tal. Me distanciei deles e fiquei com uma certa mágoa também,porque eu queria muito fazer a coisa e senti que eles não tavam prontos pra conduzir. Logo surgiu uma professora de teatro na escola, a Adriana Araújo, ela era do Guará. Aí ela tinha um contato com algum professor lá do Lyceu e rolou a coisa dos PRAECS, dos projetos nas escolas, e ela passou na minha sala. Quando ela passou, ela falou - olha eu vim aqui pra chamar pro curso de teatro não sei o que...Quando ela saiu eu lembro que o professor que tava lá, que era um professor de Biologia muito descolado que eu respeitava muito, soltou a frase, falou gente aproveita essa oportunidade porque numa escola pública ter um professor de teatro assim, podendo fazer de graça não é sempre, não é em qualquer escola. E realmente não era. Então eu juntei uma galera que tava lá, meus amigos, falei vamu vir hoje à tarde. Nós fomos, aí ela veio com todo um método que ela tava fazendo no Guará, estudando no Guará, na época tinha o Lau, a Karine Frattari, eles tavam fazendo o “Auto da Compadecida”, tavam treinando muito teatro físico, então ela tava estendendo isso pros alunos da escola. Ela traz essa técnica teatral - e até então eu sempre fiz teatro intuitivamente, vi que os meninos também faziam com essa intuição, e chega a Adriana colocando uma técnica né - técnicas vocais, técnicas corporais que ela trazia da Universidade Católica, do trabalho que ela fazia com o Samuel Baldani. Isso me encantou, adorava ir pras aulas e tal, então eu comecei a fazer parte desse grupo que era o grupo da Professora Adriana na escola, e tinha o grupo do Nando, o “Ritual Cia Cênica ' na época, e a gente meio que tinha uma rixa assim na escola, que era uma coisa super saudável na época, uma concorrência saudável, porque eu tinha passado pelo grupo Ritual, onde tava surgindo essa idéia de ritual, e tinha visto que não tinha essa metodologia, essa técnica e tava estudando com a Adriana e vi que tinha uma coisa mas o que aconteceu foi que o Nando e o Ruber começaram a organizar essa história do grupo, tiraram um monte de gente da história e ficaram fazendo teatro o Nando, o Ruber e a Maira praticamente. Eles começaram a estabelecer essa formação do grupo na época, e eu fazia teatro com a Adriana. Então tinha esses dois grupos na escola: o oficial, que uma professora coordenava e tal, e tinha o grupo dos alunos, que eles tinham uma liberdade ali na escola. E aí logo rolou uma história de eles precisarem substituir um ator, num espetáculo que eles tavam montando, o Nando e o Ruber, que era já a idéia do Ritual, então eles tavam ensaiando o espetáculo. Eles tinham essa autonomia na escola, até cobravam ingressos dos alunos, o que funcionava meio como um salário, era uma coisa bem interessante como a coisa começou a se estabelecer e que parte dessa época...mas eles começaram a fazer uma peça que se chamava “Pintou um clima”, que era uma peça sobre os adolescentes que se conhecem numa festa e tal e aí depois tinha um casamento... e aí o que aconteceu foi que a atriz principal inflamou a garganta, uma faringite, e ela fazia parte de uma seita, uma religião em que não podia tomar remédio. E aí no dia da apresentação, a mãe dela liga falando olha ela não vai poder ir hoje, não vai poder que ela tá com a garganta inflamada e ela não pode tomar antibiótico... e os alunos já tavam fazendo uma fila pra entrar e assistir o espetáculo. Daí eles foram, o Nando e o Ruber, lá na minha sala e falaram – olha, tem um personagem que é uma ponta, se você puder fazer...que aí a gente coloca um ator, que era o Ruber, pra fazer o personagem dela e você faz o padre, que só aparece no final. Foi dito e feito, o Ruber se traveste de mulher e faz o personagem principal que a Maira fazia, e eu fiz o final. Peguei o texto rapidinho e montei uma coisa, pra ajudar eles né? E o Ruber falou depois que ele sonhava que isso ía acontecer, e aconteceu de fato, e aí eu achei super interessante isso tudo, achei interessante pegar assim o personagem e montar, pegar as técnicas que eu tinha aprendido lá com a Adriana, de projeção vocal e tal. Aí a gente começa a estreitar a relação de novo. Depois do “Pintou um clima”, pintou um climão, a Maira não foi e tal e aí ela teve que se afastar, então eles pensaram em montar um espetáculo, o Ruber e o Nando, e aí me convidaram pra participar. Era “Os Tufos”, que eram três personagens estraterrestres que estavam decidindo o futuro da humanidade, e eles íam escolher se o mundo ía acabar, se o mundo não ía acabar, rolava aquela coisa do ano 2000, da virada do milênio... então o espetáculo chamava “Tufos, o destino do homem após o ano 2000”, uma coisa assim. E tinha umas idéias super legais que me inspiravam pra caramba, e aí eu fui e entrei nessa história, comecei a ensaiar com eles e aí que a minha história com os meninos, o Nando, o Ruber e o Teatro Ritual começa a se estreitar um pouco mais, com essa montagem dos “Tufos”. É também um momento em que o curso infelizmente acaba, o curso que eu fazia lá com a Adriana. O contrato dela vence, aí ela me chama pra participar do Grupo Guará. Aí eu começo a frequentar o Guará, mas não mais como aluno da Adriana, mas como um estagiário, vendo e fazendo parte dos treinamentos...o Lau Carvalho na época puxava umas coisas super bacanas, muito legais, e aí fui me tornando mais independente de professor.

A.P.: Quando você deu apoio pro Nando no Lyceu, ele já era professor? Como isso se dava?

P.A.: Era uma coisa muito interessante porque a gente saiu do Lyceu e aí a gente se formou e tal, mas a gente ainda teve uma abertura porque o diretor que entrou no Lyceu, ele super queria que a história do teatro continuasse ali. A Adriana, que era a professora... bom, houve uma fatalidade, ela foi assassinada pelo namorado e tal...mas ele queria que continuasse o professor de teatro e o Nando, como já encabeçava a história do grupo ali, propôs pro diretor, o Miguel, e ele falou “claro, pode continuar por aqui” e a gente meio que continuou com a sede do grupo lá no Lyceu. A gente saiu do Lyceu durante um ano foi quando a gente se formou. Aí ficou no Jaó, na casa do Nando.
Depois o Nando foi contratado pelo Lyceu e a gente voltou pra lá. Eu saí do grupo Guará, e nisso meio que tava só eu e o Nando tocando a história do grupo... o Ruber foi atrás de uma história pessoal e tal, a Maira também... então a gente não tinha atores, tinha várias idéias e tal. Então quando o Nando começa a dar aula, a gente vê esse potencial de de repente trazer esses alunos que faziam aula com o Nando, e aí a gente escolheu umas pessoas para montarem um espetáculo com o grupo. Então durante as aulas eu meio que acessorava o Nando... ele dava as aulas mas eu sempre tava acessorando ele, e das aulas a gente foi convidando os alunos, por exemplo o Paulinho...a gente foi convidando eles para fazer parte do Teatro Ritual. Então aí fica bem misturado a questão do Nando como professor e eu como esse estagiário, esse acessor dele dentro do Lyceu e essa ponte que era esse grupo de alunos para o Teatro Ritual, as coisas começam a caminhar um pouco juntos ali. A gente dava aula de manhã, tinha um horário que as turmas da escola inteira íam para fazer teatro...era muita gente na época, o Lyceu tinha muito aluno, a gente tinha que dividir todo mundo em umas duas ou três turmas, e a gente dava aula o dia inteiro pra elas... e ainda tinha um horário que era um horário pro grupo e que a gente convidava alunos dessas três turmas pra participar de um núcleo comum, que era o núcleo de produção, que era o Teatro Ritual.

A.P.:
E aí depois você também passou a ser professor, não é? Queria que falasse um pouco disso, e de quando você montou as peças com os alunos e houve prêmios na história...

P.A.:
Essa história da educação vai...então, quê que acontece...eu não era professor efetivamente, o Nando tinha um contrato lá no Lyceu e eu não, então eu auxiliava ele, e essa coisa do professor de teatro na escola não era formal...aí paralelamente tá rolando na cidade a coisa da estruturação na educação da coordenação de artes no Estado, que era o Ciranda da Arte. Então quando o Ciranda tá nascendo e descobre o trabalho do Nando lá no Lyceu, então eles falaram ó vc é o professor de teatro aqui, e tem o professor de dança, o de música, então vamos unir esses professores e fazer uma reorientação, uns cursos... e aí começa a ter a coisa dos PCNs e isso tudo a Luz Marina coordenando. A idéia do Ciranda da Arte, que nasce, que surge dessa coordenação dos professores de arte, então começa, o que foi muito importante. Então o Nando começa a fazer esses cursos de formação, que eram muito interessantes, o PCN com Arte, a idéia dos PCN, os Parâmetros Currriculares Nacionais. Pra escola os parâmetros em arte eram muito interessantes...eu achava muito legal, porque a gente dava aula assim muito intuitivamente e aí saber que tinham esses parâmetros que estavam sendo implantados nas escolas chamou muito a atenção...então o pessoal deu cursos pra esses professores e aí levava esses professores pra outras cidades por exemplo Goiás Velho, Pirinópolis, e eu sempre que podia dava um jeito de ir também, não para fazer o curso regularmente porque eu ainda não era professor, mas já tava me aproximando dessa idéia, desse meio que eram os professores de arte. A Luz Marina a gente conheceu num desses “PCN com Arte” e aí estavam ampliando a coisa dos PRAECS com o projeto de teatro, o projeto de dança, o projeto de música, o projeto de artes visuais...começou a criar esse fôlego e aí surgiram duas escolas, o Rui Brasil e a Guanabara, e aí quando ela propôs pra eu pegar, eu “ôpa é agora”...peguei as duas escolas e comecei a desenvolver o projeto lá. O Nando continuou no Lyceu, e aí a gente se divide um pouco, o Nando no Lyceu, e eu fui pra outras escolas. Isso na verdade meio que ampliou a idéia da gente de estar sempre observando esses alunos e os que se destacavam , os que tinham uma vocação maior a gente convidava pra continuarem com a gente a história do Teatro Ritual. Quando eu vou pro Rui Brasil e o Guanabara, são dois universos completamente diferentes, o que era muito interessante porque era uma escola de periferia num bairro super afastado, uma realidade social super precária, muito carente e o Rui Brasil, que era numa área nobre da cidade, no Setor Oeste, que tinha um perfil de alunos um pouco mais ricos. Então eram universos muito diferentes, e isso tudo me instigava bastante...achava muito interessante trabalhar com essa diversidade, e aí eu tive a idéia num determinado momento de tentar fazer uma ponte entre esses dois universos, do Setor Oeste com o Jardim Guanabara. Comecei a misturar esses alunos, trazer estes mais carentes que nem sequer vinham ao centro nem pra passear. Quando eles vinham pro centro de Goiânia, era como se fosse pra outra cidade, eu botava tudo num ônibus e trazia eles pra cá e a turma daqui levava pra lá. Obviamente foi um período muito fértil né, a gente produziu muita coisa interessante e os projetos dessas duas escolas se destacaram muito, porque a diversidade era muito grande, alunos tinham muita vontade de fazer as coisas e eu muito apaixonado, porque também entrei na faculdade nesse mesmo período... então via muita coisa da faculdade e minha cabeça foi se abrindo muito,. Foi um período realmente muito interessante, a gente fez uns trabalhos nessas duas escolas que se destacaram bastante, e consequentemente os trabalhos começam a se destacar no Ciranda da Arte... nas mostras dos alunos as pessoas achavam muito interessante o tanto de aluno, porque as pessoas tinham muita dificuldade de reunir o grupo pra fazer teatro fora do horário de aula e tinha que dar almoço pra esses meninos, enfim...então eu levei toda a experiência que eu tive no Lyceu com o Nando e a coisa da universidade mais essa relação com a diversidade cultural e social, e isso tudo foram cinco anos de intenso trabalho nas escolas...

( A entrevista continua...)

Entrevista com Luz Marina Alcântara (por Andrea Pita):

Neste mês de março, o Teatro Ritual comemora seus 15 anos de existência, motivo pelo qual o blog disponibilizará entrevistas com o grupo ou com pessoas que foram importantes ao longo dessa trajetória. A primeira a ser entrevistada é Luz Marina de Alcântara, diretora do Centro de Estudo e Pesquisa Ciranda da Arte. A convivência entre Luz Marina e Nando começou ainda na época em que este era professor do Lyceu. Nando lutava pelo teatro na escola e, se fosse necessário, falava com os professores de matemática, português e outros para que houvesse uma avaliação conjunta e o teatro fosse levado a sério. Luz Marina, por outro lado, ocupava-se intensamente com a arte nas escolas do Estado, em suas quatro linguagens. O Teatro Ritual, desde que foi criado, sempre lutou para fazer acontecer. Nesse sentido, propunha cursos em Goiânia, em outras cidades ou Estados, trazia pessoas importantes às áreas para que o grupo e a cidade pudessem “reaprender” o teatro. Por sua vez, o Ciranda da Arte, como Centro de Estudo e Pesquisa, desde seu início congrega pessoas, professores ou artistas que acreditam na formação continuada como fundamental em um mundo em constante mudança e necessitado de maior humanização. A parceria não ocorreu por acaso. Nando e Luz Marina, ao longo desses anos, foram se reconhecendo cada vez mais: Nando leva muito a sério o projeto do Teatro Ritual, enquanto Luz Marina demonstra essenciais conhecimentos, valorizando e dando o suporte necessário para respaldar o projeto, tanto no Ciranda quanto fora dele.

Mas vamos à entrevista:

Andréa Pita: Luz Marina, pelo que me recordo, Nando disse que vocês se conheceram no “PCN com arte”, o primeiro projeto grande de formação de professores de arte no Estado, realizado em parceria com o governo federal. O projeto tinha vários módulos e professores de várias modalidades de arte participaram. Como foi isso?

Luz Marina: Antes do “PCN com arte”, assim que eu assumi a Subsecretaria Metropolitana, tentamos organizar todas as áreas da arte. Naquela época, entrei para coordenar os projetos de Coro e de Banda que já existiam nas escolas, mas assim que eu cheguei na Metropolitana, descobri que também havia um trabalho já começado nas escolas com teatro. Numa dessas escolas, que era o Lyceu, estava o Nando como professor de teatro e ele e outros colegas até tinham realizado alguns festivais envolvendo as escolas que participavam, que eram o Lyceu, o Pré-vestibular que hoje é o Pré- universitário, o Jardim América. No Pré-vestibular estava o Eduardo de Souza, no Jardim América estava o Adélcio e tinha o Júlio no Goiany Prates. A Secretaria já tinha esse projeto acontecendo em quatro escolas; isso foi mais ou menos em 1998, 1999, quando eu entrei na Metropolitana e, em 2000, nós realizamos o referido projeto. A Superintendência de Ensino Fundamental recebeu um projeto diretamente do MEC, para formação de professores da área de arte e esta formação se chamava “PCN com Arte”. E, nessa época, nós levamos para essa formação 120 professores do Estado; essa formação foi feita nas áreas específicas, com 30 professores de cada uma das áreas: 30 para Música, 30 para Dança, 30 para Artes Visuais, 30 para o Teatro e, essa turma, nesse momento do “PCN com Arte”, eu passei a conhecer melhor os professores que já estavam trabalhando na respectiva área nas escolas, não só em Goiânia, como também em todo o Estado. Esse projeto chegou, foi desenvolvido em 3 ou 4 estados. Foi um projeto, um piloto feito nessa formação. Os outros estados, que fizeram o “PCN com Arte”, foram Acre, Mato Grosso do Sul e Bahia. Foi um curso muito legal. Quem trabalhou com o teatro, juntamente aos professores, foi a Rô Reis, de Salvador. E ela deu um presente para os professores que fizeram a formação em teatro, que foi uma viagem, à Bahia, com estadia paga. Nesse sentido, a Secretaria da Educação bancou a viagem a Salvador, concedendo um ônibus. O evento que lá seria prestigiado era o Mercado Cultural, o qual acontece naquela capital. E nós estivemos, então, com os professores que fizeram o “PCN com Arte”, durante uma semana, neste evento. E aí houve uma integração maior entre os professores da área de teatro. Tanto é que o projeto de teatro se expandiu a partir dessa formação. Foi assim que eu conheci o Nando; nessa época, não tínhamos o Pablo conosco ainda. Pablo veio depois. Foi pelo Nando que nós o conhecemos, porque o Nando foi para formação e eu fiquei sabendo, posteriormente, que o Pablo também estava na cidade, embora não estivesse no hotel com nossa turma. Mas ele estava na cidade, acompanhando também a nossa formação.

A.P.: E o Pablo? Como você veio a conhecer melhor o trabalho dele? Parece que ele trabalhou um tempo na escola do Jardim Guanabara, onde conseguiu dois prêmios para o grupo da escola, ganhando para aquela unidade computadores, verba. E só depois que entrou para o Ciranda. Como se deu esse fato?

L.M.: Na Secretaria, em 2000, no final dessa formação, surgiu uma proposta da Superintendência que se chamava “Escola em Movimento”, a qual, atualmente, denominamos PRAEC. Na verdade, foi quando se criou o PRAEC, que eram os projetos que os professores desenvolviam no contraturno do aluno, com a finalidade de aprofundar o conhecimento discente na área. Então, nessa época vários professores de teatro foram contratados para as escolas, haja vista que não tínhamos, na rede, professor efetivo de teatro. Foi a partir daí que aconteceram as contratações e, assim, o Pablo foi enviado ao Colégio Jardim Guanabara. E ele fez um trabalho muito bacana, maravilhoso. Eles participaram de um concurso, que eu não me lembro bem, mas parece que era proposto pelo Banco do Brasil... Enfim, era um concurso feito diretamente com as escolas e era como um festival. O Colégio Guanabara participou e ganhou prêmios, no entanto, não sei detalhar com precisão. Desse modo, a partir do concurso ele foi mais direto com a escola, mas não por meio da Secretaria. Eles foram premiados e a partir de então eu conheci o trabalho do Pablo, que eu gosto muito, bastante mesmo. Portanto, o Ciranda da Arte foi resultado das formações que fizemos, no período compreendido entre 2000 a 2004, estivemos sempre trabalhando com os professores da área de arte, o qual resultou na criação de um Centro de Estudo e Pesquisa na área de Arte. Foi quando eu trouxe o Pablo e o Nando para fazerem parte de nossa equipe, para somarem esforços na formação dos professores e, posteriormente, eles se engajaram na área de produção artística, uma vez que nós também temos esse lado bem difundido no Ciranda, que são os grupos de produção. E, hoje, temos a “Trupe dos Cirandeiros”, da qual o Nando, o Pablo, a Ilka e a Jô fazem parte.

A.P.: Como se iniciou essa história do grupo de produção?

L.M.: Durante o momento da reorientação curricular, nós trabalhamos com os professores aqui de Goiânia, sobretudo com aqueles que têm mais acesso ao Ciranda da Arte. Mas, além disso, fizemos um trabalho com os professores do interior de todo o Estado de Goiás. E, nessa demanda da reorientação fora do Ciranda, centramos nosso trabalho em Pirenópolis; foi um momento que encontramos não dentro da reorientação, mas também dentro do pensamento de orientação dos professores, em Caldas Novas, para onde levamos o grupo de produção para se apresentar. Esse foi um momento muito importante para os professores que moram fora de Goiânia e que não têm muito acesso ao teatro, à arte, enfim. Muitos infelizmente não têm esse acesso e, desse modo, foi bastante enriquecedora a apresentação do Grupo de Produção, que pôde mostrar seu trabalho, seu trabalho de criação e também o resultado de seu trabalho. Percebemos, ademais, que isso motivava os professores a também buscarem formar seus grupos nos seus locais, nas suas cidades; funcionou, na verdade, como uma injeção de ânimo aos professores, o que contribuiu positivamente na efetivação desse trabalho.

A.P.:A partir de então, o Pablo chegou a coordenar o trabalho de teatro no Ciranda?

L.M.: O Pablo esteve na coordenação do teatro dentro dessa questão da formação dos professores. Quando nós começamos o Ciranda, em 2004, tínhamos um coordenador, que era o Adélcio. Daí, quando ele se mudou sentimos a necessidade de buscar o Pablo para a coordenação desse grupo. E em nenhum momento houve uma ruptura, porque o pensamento continuou, o pensamento do teatro na educação. A busca de compreensão desse processo de criação, voltado para a escola, não teve nenhuma quebra. O Pablo até, de certa forma, ampliou a possibilidade de as escolas participarem do projeto, concedendo a elas o apoio devido, nesse momento. E os diretores das escolas sempre buscam as apresentações de teatro, considerando que as crianças e os adolescentes gostam muito de assistir apresentações de teatro. Às vezes, fico questionando com os meninos do Coro que precisamos pensar um repertório para atender os jovens, já que nosso repertório está mais para o professor. Temos, sim, um trabalho voltado às crianças, porém não um mais direcionado aos jovens. Ainda nesse ano o Coro pretende disponibilizar um repertório que os atenda mais diretamente. Isso é muito importante. Mas o teatro cobre esse lado. Quando o evento da escola é para os alunos do ensino médio, a gente pensa logo no teatro, pois há uns quadros muito interessantes e que falam a linguagem dos jovens.


(A entrevista continua...)

TEATRO RITUAL em treinamento com Victor de Seixas (foto: Andrea Pita)

TEATRO RITUAL em treinamento com Victor de Seixas (foto: Andrea Pita)

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Teatro Ritual em treinamento com Victor de Seixas (foto: Andrea Pita)

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Fantasma, de Victor de Seixas

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Há algumas semanas atrás escutei em uma palestra sobre Jerry Grotowski, uma frase a qual ele dizia: “o exercício para o ator e como escovar os dentes, e muito bom para ele, mas necessariamente não vai fazer-lhe mais expressivo”, retornando da tumba pela boca de outra pessoa, Grotowski veio me assombrar, fiquei com esta frase na cabeça durante vários dias, porque? Atualmente dedico a maior parte do meu tempo, posso dizer até alguns anos de minha vida, exclusivamente a aprender a fundo à mímica corporal dramática, técnica essa desenvolvida por Etienne Decroux, e hoje ensinada por poucos de seus ex-assistentes, uma técnica baseada em intensos exercícios físicos e repetição de formas e movimentos pela imitação, parei e comecei a perguntar a mim mesmo: estaria eu apenas a “escovar os meus dentes?”.
O cérebro humano tem a tendência à “automatizar” movimentos físicos repetidos com freqüência, para facilitar nossas vidas, usando menos energia e concentração em práticas cotidianas deixando espaço para outras funções mais utilidade, por isso depois de três anos trabalhando duro, repetindo centenas de vezes seqüências de movimentos, formas e outros exercícios eu me tornei na escola para meus professores um “bom mímico”, isto é não penso mais antes de fazer os exercícios propostos, sinto uma melhora na minha coordenação, tenho mais controle sobre meus movimentos, consigo isolar os diferentes músculos para diferentes ações, enfim, tenho mais controle sobre meus movimentos e minha movimentação no espaço, mais isso não significa que eu tenha me tornado um mais expressivo.
Um pianista depois de dedicar anos repetindo escalas e estudando por várias vezes exercícios repetitivos e às vezes monótonos, não pensa antes de pressionar a tecla do piano, e muito menos faz isso com dificuldade, para ele é automático o movimento de suas mãos em relação à posição das teclas do piano, mas este fato não o faz menos expressivo, dentro do movimento “automático” ele tem várias maneiras de tocar a mesma nota, mudando completamente o resultado final imprimindo sua interpretação a obra.
O que vai diferenciar os movimentos “automáticos” e “orgânicos”, será então a sua relação com o que você está fazendo ou tentando expressar, o velho chavão de “estar presente” no momento, dando um sentido lógico ou abstrato, mas importante dando um sentido ao movimento.
Quando o ator treina fisicamente sem ser para um espetáculo ou show, não é sempre possível manter a organicidade, como um músico iniciante treinando com seu instrumento, ele provavelmente deseja se aprimorar para tocar em público está aprimorando sua técnica para depois compor ou interpretar músicas de outro autor, mas primeiro ele precisa que seus movimentos se tornem “automáticos” em relação ao instrumento, isto é repetir, repetir, para depois aplicar sua interpretação pessoal, e da mesma forma o ator depois de qualquer treino técnico tem que no final aplicar os resultados de seu treino de uma forma expressiva, pois senão o exercício corre o risco de se tornar apenas uma ginástica.
Dentro do treino que estou agora, muitos alunos no desejo de aprovação pelo núcleo social da escola se dedicam na tentativa de se tornar um “bom mímico” aos olhos dos professores ou do pequeno meio social a sua volta, criando uma armadilha sem saída, os que não conseguem a aprovação desejada, tem sua auto-estima destruída, mesmo tendo ganho muito expressivamente com a técnica, e os que por ventura conseguem o reconhecimento desejado, tornando-se “bons mímicos”, quando se terminado o processo de estudos, afastados deste pequeno meio social, a escola, ficam perdidos, pois o que o “bom mímico” faz com esta técnica, sem a estrutura hierárquica da escola? A tendência é cair em uma mistificação de Decroux e da técnica como algo sagrado e hermético, esvaziando o objetivo principal que e aprimorar a expressividade do ator.
Para se trabalhar com qualquer técnica física para o ator, há a necessidade de manter os objetivos fundamentais claros, sem mistificações ou elitismos, que é aprimorar sua expressividade, depois entrando outra questão tão importante se não a mais importante de todas, que é o que você quer dizer através da técnica que esta estudando.
De nada adianta um pianista virtuoso com um repertório pobre, nada adianta ter uma técnica estupenda, uma voz maravilhosa se não temos nada a dizer, e isso muita gente esquece esvaziando qualquer técnica, linha ou teoria, pois a escolha do caminho dentro do teatro tem que estar em função da nossa ideologia, não para enobrecimento ou status por ter estudado esta linha ou outra, mas para melhorar o meio de expressão, e assim dizer mais claramente o que pensamos…

(Gentilmente cedido por Victor de Seixas, escrito em abril de 2004.)

A máscara neutra na preparação do ator, por Andrea Pita

Durante o treinamento do Teatro Ritual com Victor Seixas foram dedicados alguns momentos para o convívio com a neutralidade. Cada um dos atores punha um pano branco cobrindo a cabeça e empreendiam exercícios de improvisação dentro de alguma situação ou com regras específicas. Resolvi então relembrar o que para mim é crucial no tema.
A questão da neutralidade parece ter sido considerada importante para o trabalho do ator ocidental a partir de Copeau. Em 1913 este já havia lançado em manifesto sua posição contrária ao naturalismo. Contra a parafernália de janelas, balcões, armários, camas que entulhavam o espaço cênico naturalista e impediam a expressão corporal do ator, Copeau pregava o “palco nu”. Depois da Primeira Guerra Mundial, com a fundação da École du Vieux Colombier, começa a usar máscaras neutras, um verdadeiro achado na preparação para a atuação nos palcos dos novos tempos(1).
Nas máscaras neutras, os traços costumam ser regulares, não realísticos e trazem a ausência de emoção. Como a abundância de detalhes não é legível à distância, os contornos da máscara devem ser precisos. O trabalho do escultor unido ao do ator pode dar relevância a determinadas angulações, oferecendo assim diferenciadas facetas à expressão.
O peso da máscara deve ser moderado e é importante que dure. Existem, por exemplo, modelos de papier machê e de couro. Em relação a esta última, é considerada de melhor qualidade pois se adequa melhor ao rosto com o decorrer do tempo. Como se diz: não se veste uma máscara, se “calça” uma máscara, tal deve ser integração máscara-rosto-interpretação. Um importante confeccionador foi Sartori, que fez máscaras neutras para Lecoq, frequentemente com par de linhas que definia o nariz e que continuavam para cima formando a linha das sobrancelhas, parecendo abstratas para quem as via (2).
Nos processos com a máscara geralmente os aprendizes/alunos são informados com relação ao ritual de respeito para com ela. Deve-se, por exemplo, evitar pôr a mão diretamente na máscara, devendo-se segurá-la pelo topo, pela base ou pelos lados, mas nunca no nariz ou nos olhos. Para colocar ou retirar a máscara, deve-se virar de costas para o público. Falar com a máscara inteira sobre o rosto, nem pensar, é preciso que o ator retire a máscara para fazê-lo.
Mas o que seria a neutralidade propiciada através do trabalho com a máscara neutra? Trata-se da busca do ator de libertar-se de seus próprios hábitos, de seus movimentos corriqueiros, do mecanismo no qual de alguma forma alicerçou sua personalidade - seja por influência genética, da cultura, das pressões sociais ou de sua estrutura psicológica.
A princípio, poder-se-ia pensar que o trabalho com a máscara deixe o ator tranquilo, já que ele se sentiria escondido, o que se descobre ser um engano em seguida. Ao esconder o rosto, a máscara tira a parte do corpo na qual o ator está mais acostumado a se apoiar, de modo que este se sente como que nu, exposto de uma forma como talvez nunca tenha experimentado antes.
No início do processo com a máscara, é comum que o ator imponha um caráter ao movimento, que desenvolva formas estereotipadas e faça gestos condicionados, o que muitas vezes acontece sem que ele o perceba. Se o peito, por exemplo, estiver involuntariamente afundado, poderá expressar fadiga ou astúcia, e se expandido, orgulho. Exercícios de consciência corporal são por isso extremamente necessários. Na Vieux Colombier Copeau usava acrobacia, ballet clássico e método rítmico de Dalcroze. Hoje em dia a educação somática também pode e deve contribuir muito neste sentido. A preparação corporal ajuda no condicionamento, numa melhor desenvoltura das articulações do corpo, na abertura para as sensações despertadas pelo movimento do corpo no espaço, ajudando o ator a perceber a importância do corpo todo na atuação.
A “via negativa” também é uma metodologia comumente escolhida por professores que trabalham com a máscara e consiste em dizer aos alunos não o que fazer, mas o que não devem fazer. Assim, o ator é sempre obrigado a superar um obstáculo, a achar outra saída. Desprotegido e só possuindo o corpo para se expressar, o ator tem as qualidades de seus movimentos percebida por todos e por ele mesmo, consciência essa que vai aumentando com o tempo. Como não existem modelos, o ator deve descobrir a neutralidade nele mesmo. E como cada corpo e história pessoal são diferentes, as neutralidades são diferentes.
Ao contrário do que muitos pensam para a neutralidade, silêncio e imobilidade correspondem apenas a determinados momentos na máscara neutra. Esta pode permitir grande velocidade e várias qualidades de movimento dentro de um exercício de improvisação. No entanto, é preciso calma e receptividade para pôr a máscara. Lecoq, por exemplo, fazia com que o ator ficasse olhando a máscara por 8 dias, antes de colocá-la, talvez prática inspirada no teatro oriental (3), onde em algumas tradições ao ator é dado inclusive o trabalho de achar a árvore da qual retirará a sua máscara.
Assim, silêncio, imobilidade, neutralidade dentro de si seriam qualidades imprescindíveis para este momento inicial, antes de colocar e ao colocar a máscara. Deve-se permitir que respiração, pensamento e atitude sejam mudados pela máscara. Já no estado de neutralidade como um todo, é preciso que reine a economia - todo movimento gratuito deve ser eliminado, pois é um erro de distração provocado pela ansiedade. Tomam lugar energia e ritmo no espaço e tempo apropriados que determinada ação requer. O ator deixa que apareça o movimento ao invés de ele mesmo aparecer.
Alguns falam da percepção de uma segunda pessoa no corpo familiar. Despido, o ator tem apagada a sua persona social através do estado de atenção e consciência que mantém durante o uso da máscara neutra. Este já não pensa no que fará no momento seguinte, movimento tão comumente captado pelo público quando assiste a uma apresentação. A perda da persona social ajuda na desinibição e nada mais impediria o ator de estar completamente livre numa improvisação. Desse modo, o despojamento do “palco nu” de Copeau se transfere para o uso da máscara.
No Teatro Nô é importante o palco vazio e despojado como o jardim de um templo Zen. Aos poucos esse palco vai sendo povoado por deuses e espíritos, vozes, sons, presenças invisíveis e visíveis. Como uma xícara que não pode estar cheia para ser receptáculo. A metáfora do palco vazio, que em Copeau seria o “palco nu”, deve ser transferida para o ator, que precisa se despojar de suas próprias opiniões, pois só um espírito livre e vazio é receptivo. E assim, paradoxalmente, o que poderia parecer redundar num vazio tedioso se torna um vazio pleno e a capacidade expressiva do ator se multiplica.

Obs: Beth Lopes comentou em sua tese de doutorado a respeito das máscaras, que estas podem provocar transes. Diz que uma vez pôs uma máscara de Pantaleão e saiu pela rua, quase se perdendo de si mesma e de sua persona social. A importância dos rituais que demonstrem respeito para com a máscara e seu uso podem ajudar muito a evitar esse tipo de situação, pois colaboram inclusive para diferenciar bem o momento em que se põe e o momento em que se tira uma máscara. Para evitar mal-entendidos, preconceitos e erros no uso e também ter a preparação adequada com a máscara neutra, é extremamente importante a presença de um condutor minimamente preparado para tal.


(1) A máscara neutra era usada por Copeau como preparação para atuação no teatro não mascarado.
Pode-se também utilizar a máscara neutra como preparação para uso de máscaras expressivas, a exemplo da meia-máscara de Commedia dell´Arte e a chamada “menor máscara do mundo”, o nariz do clown/palhaço.
(2) Entre as máscaras neutras, a de Mazzone-Clementi era mais “metafísica” e abstrata , sendo definida apenas por uma linha central , outra nas sobrancelhas, um olho em forma de círculo e outro com forma de triângulo.
Máscaras neutras também chegam a ser usadas em cena, a exemplo das máscaras das tragédias encenadas por Saint Denis.
(3) Para Copeau, um dos três elementos fundamentais para a recuperação da arte do ator era o estudo do teatro japonês - Nô e Kabuki. Os outros dois eram o espaço do teatro grego e a improvisação da Commedia Dell’Arte.

O GRANDE QUARTETO FRANCÊS de Bari Rolfe, traduzido por Javier O’cenig e Victor de Seixas

Um quarteto francês está inevitavelmente associado com a mímica hoje em dia, são quatro artistas que têm trabalhado diferentemente daqueles que os precederam. São quatro artistas notáveis com reputação internacional, são contemporâneos e dois ainda estão em atividade. É ainda mais notável que o trabalho de cada um tomou uma direção própria diferente das demais. E mais surpreendentemente ainda é que os quatro derivaram da mesma fonte.

No início dos anos 20 foi aberta em Paris a Vieux Columbier, uma escola de treinamento para atores. O Diretor Jacques Copeau tinha o que foi para a época uma abordagem revolucionária; ele rejeitava o então popular naturalismo estrito em favor do impressionismo, um movimento compartilhado por vários outros diretores tais como Gordon Craig, Adolph Appia e Nicolai Evreinoff. O Impressionismo abriu as portas para o teatro não-literal, não-realista, para um teatro mais físico, da fantasia, dos sonhos e da metáfora.
O programa de Copeau incluía estudos com máscaras, expressividade corporal, clown, commedia dell'arte, acrobacia, dança, música/movimento, identificação animal, e a atuação muda. Ele enfatizou o ensino da comédia e do Coro Grego da antigüidade (teatro não-realista épico e farsesco) como importantes objetivos no desenvolvimento de atores capazes de atuação coletiva em estilos físicos.
Depois que a Vieux Columbier fechou, duas importantes escolas nasceram de sua experiência, de Charles Dullin e a de Jean Daste, que funcionaram como elos no desenvolvimento do Grande Quarteto Francês:

Etienne Decroux
Fez sua matrícula na Vieux Columbier em 1923, Etienne Decroux ocupou-se com uma visão voltada para a mímica durante suas aulas, e desenvolveu um estilo pessoal e original de movimento.A sua mímica busca resgatar figuras de Rodin; e daí derivou uma forma mais plástica, a qual foi denominada Mímica Corporal. Um intelectual e teórico, seu treino corporal baseava-se, por um lado, no que os dançarinos modernos chamam de isolação, com as seções do corpo movimentando-se numa seqüência prescrita, e por outro lado, na física, estudando a compensação necessária para manter o corpo em equilíbrio quando o centro gravitacional é deslocado.
Decroux tentou envolver outros alunos na sua companhia de mímica, porém os alunos de teatro não se mostraram muito interessados. Quando a Vieux Columbier fechou em 1924, Decroux passou a lecionar na escola de teatro de Charles Dullin, a Atellier. Jean-Louis Barrault juntou-se a esta escola também, e os dois trabalharam juntos por dois anos, produzindo vários números de mímica em conjunto ou separados.
A primeira contribuição de Decroux foi como professor na referida escola. Os seus espetáculos enquanto tais, não foram muito importantes, e mesmo esses espetáculo eram tratados por ele mesmo como ensaios. Muitos deles eram apresentados em estúdios para pequenas platéias convidadas. Ele mesmo trabalhou como ator, notavelmente, com Barrault no Les Enfants du Paradis, representando o pai de Deburau, e em outros filmes também. Decroux abriu a sua própria escola em 1941, e desenvolveu uma teoria para endossar o seu sistema. O seu trabalho teve efeitos contundentes em artistas como Barrault e Marcel Marceau, embora eles tenham posteriormente seguido seus próprios passos.
Decroux já foi chamado o pai da mímica moderna, o que na verdade significa dizer que ele é o pai do seu próprio estilo; havia e há outros estilos de mímica moderna que não estão relacionados ao seu. Além da sua contribuição enquanto professor, a sua influência sobre Barrault e Marceau criou um tremendo ímpeto para a mímica na França, espalhando-se a seguir por todo o mundo. O seu trabalho continua a estimular e inspirar muitos artistas da mímica.

Jean-Louis Barrault
Jean-Louis Barrault foi um ator, diretor, professor, escritor e teórico. Seu interesse pela mímica foi uma parte do seu amor pelo teatro como um todo. Ele foi para a escola de Dullin em 1931 sem um centavo, e foi cativado pela mímica já na sua primeira aula com Decroux, e os dois trabalhariam juntos por dois anos, vivendo frugalmente a base de peixe defumado, uva passa, alface, e frutas. Eles inicialmente trabalharam uma "mímica objetiva", utilizando ilusão e objetos imaginários, como até hoje se faz, mas foi a "mímica subjetiva" que passou a ser o estudo final, estudando os estados de ânimo, corporais, e emoções. A invenção do andar no lugar de perfil levou muitos outros a desenvolver outras ilusões de movimento no lugar.
Além das suas gloriosas experiências de juventude, Barrault é muito mais conhecido pelo seu papel de Jean Gaspard Deburau no filme Les Enfants du Paradis. O filme introduziu o que era considerado o estilo de pantomima de Deburau, Barrault consultou para tanto o mímico Georges Wague, tornando esse estilo um sinônimo da mímica para grandes platéias. Ironicamente, os dois atuaram no filme muito depois de haver perdido o interesse pelo estilo da pantomima-arlequina (pantomime-harlequinade).
A ênfase de Barrault durante seus primeiros anos, e pelo resto da sua vida, foi sobre os aspectos físicos da atuação, e ele incorporou a mímica em seus processos altamente imaginativos de produção de espetáculos. Na peça "Rabelais," 1968, seus atores utilizavam a mímica para representar o nascimento de Gargantua, animais, a forma e o movimento do navio, e realizou diversas seqüências de mímica com narração.

Marcel Marceau
Marcel Marceau dispensa uma apresentação da sua importância e influência. Ele literalmente criou um público para a mímica no seu tempo, e também fomentou o desejo de ser mímico de inúmeros artistas. Marceau atraiu tanto o público de teatro nas suas tournes desde 1949, como o público popular através das suas diversas aparições na televisão. Seu caminho para a fama foi meteórico, apresentando-se no mundo todo em poucos anos.
Para a maioria do público mímica está associada diretamente ao trabalho de Marceau. Ele próprio assume a Chaplin uma grande influência no seu trabalho entre outros, como o próprio Decroux, quem fora seu professor na escola de Dullin em 1946. A maquiagem de Pierrô e o estilo anedótico de Deburau(pelo que se sabe dele) são toques franceses, e o seu personagem (Bip) é Chaplinesco e clownesco. Marceau criou também outros estilos de pantomima, como a mímica abstrata e mímica elíptica.
Como praticamente primeiro e certamente mais conhecido mímico nos Estados Unidos, ele serviu de modelo para muitos aspirantes a mímico. Além disso, o público passou a esperar (exigir) por números semelhantes aos de Marceau, e alguns artistas encontram dificuldades em terem outros estilos aceitos pelo público. Na realidade, nenhum estilo pode ser mantido como sagrado, e o próprio Deburau foi acusado de falta de fé no seu próprio trabalho. Se falarmos em imitação, a resposta de Marceau é que os alunos deveriam imitar a sua técnica, porque deste modo a forma artística seria preservada; a partir daí eles deveriam desenvolver sua própria caraterização, seus próprios conceitos. Ele chama este processo de "imitação com continuação"; pois os alunos devem continuar pelos seus próprios caminhos artísticos.

Jacques Lecoq
Jacques Lecoq é primariamente um professor, às vezes diretor, e tem o conceito mais amplo de mímica dentre os quatro. Ele chamou a sua escola em Paris de Escola Internacional de Teatro e inclui muitas técnicas diferentes do treino físico, sem pretender perpetuar a mímica numa forma definida, estruturada, convencional. Lecoq vê a mímica de duas maneiras: como uma forma artística em constante transformação, e como uma fonte de confiança para diversas formas dramáticas, para a dança, música, arquitetura, literatura, entre outras. Emboras integrantes dessas categorias profissionais se vejam atraídos por essa escola, a maioria dos alunos é constituída por mímicos, atores e diretores.
Lecoq na juventude era um atleta e paramédico para atletas; seu interesse pela mímica teve origem em um grupo de estudos, no qual foi pupilo de um notável professor de educação física. Durante uma apresentação com o seu grupo em Grenoble, Lecoq foi visto por Jean Daste que prontamente o convidou para integrar a sua companhia. Atuou como ator na trupe e foi encarregado do treino físico. Depois disso, foi para Itália onde lecionou na Universidade de Teatro Pádua e no Piccolo Teatro di Milano; após alguns anos voltou a Paris e abriu sua escola em 1956.
Essas são as origens da mímica de hoje em dia. Os quatro, formados dentro da ótica de Copeau, são diferentes em suas contribuições para a mímica: o estilo e a técnica meticulosa de Decroux, a integração da mímica com o teatro falado de Barrault, Os sketches e as abstrações simbólicas de Marceau, e a preocupação abrangente de Lecoq com o movimento.
Provavelmente a maioria dos mímicos e professores de mímica hoje em dia tem origem direta ou indiretamente nas fontes francesas. O Grande Quarteto Francês deram início a uma onda de interesse crescente pela mímica moderna, uma onda que nós estamos encantados em poder seguir e que ainda não foi exaurida.


Com a gentil permissão de Victor de Seixas,
Vejam mais no site http://www.mimicas.com/

Entrevista realizada com Victor Seixas

por Andrea Pita
para o TEATRO RITUAL,
em 27/01/2011, às 16:00

Ele é do Rio e atualmente mora em São Paulo. Victor Seixas ficou durante uma semana e meia com o Teatro Ritual, tempo no qual o grupo teve contato com muitas técnicas desenvolvidas a partir de Étienne Decroux, criador da Mímica Corporal Dramática e considerado o pai da mímica moderna. Num dos intervalos do curso, aproveito para entrevistá-lo. Sempre utilizando gestos para falar, Victor diz que todo mímico, por estranho que pareça, gosta muito de falar. Que quando encontra Calado(sic!), outro mímico, que os dois brigam para poder falar.
Bom, somos todos ouvidos, Victor, pode falar à vontade.




AP: Victor, fala um pouco de como foi seu caminho na vida artística...

VS: Antes mesmo do teatro, eu era interessado por movimento. Era apaixonado por balé desde uns 11 anos, mas sem coragem...eu estava sendo educado para ser jornalista, um pensador de certa forma. Então fiz algumas aulas mas não segurei, larguei... e meus pais me colocaram na aula de inglês. Com 15 anos resolvi voltar. Mas aí eu tive um problema de saúde, fiquei quase um ano usando muleta para recuperar a perna... Segui a vida, me formei como técnico em comunicação. Radialismo, comunicação e marketing.
Durante esse período tive uma namorada que prestou para Escola de Teatro Martins Pena no Rio,acompanhei ela no processo, mas ela não passou e também acabamos terminando. Bem, anos depois, teve um dia, passando na frente desta escola com um amigo, é um casarão antigo no centro do Rio, entramos para dar uma olhada e de longe assisti um pouco de uma aula ministrada por Richard Riguetti, ele usava bastões, cambalhotas, todos vestidos de preto, achei aquilo lindo.
Resolvi entrar no curso para quem sabe perder um pouco da vergonha, daí em diante não parei...
Depois fui fazer a Escola Nacional de Circo no Rio que havia reaberto, isso devia ser em 92 e lá era bem rígido, principalmente com atores, e na sua festa de 20 anos, dei uma entrevista que meti o pau em usar animais no circo e disse que não tinha interesse em seguir carreira em circo tradicional... A matéria foi publicada no Jornal O Globo, e ficou colado no mural da escola, não fiquei muito popular com os professores... A escola nesta época fazia um exame de admissão depois dos primeiros 6 meses de aula, e os alunos tinham que conseguir cumprir com um mínimo de exercícios propostos, cambalhotas, movimentos simples no trapézio, etc, e neste teste me reprovaram, apesar de ter feito acima do que era preciso...
Na época isso me deixou bem chateado, mas no final foi o que me colocou na direção que estou hoje, porque entrei em uma oficina de circo do SATED que era realizada no Circo Voador na Lapa, lá acontecia muita coisa ao mesmo tempo, e foi onde tive meu primeiro contato com dança contemporânea e conheci um mímico que estava fazendo aulas de palhaço, o Jiddu Saldanha. Achei a forma que ele se movia, articulava fascinante, estranho, diferente... Nesta época não tinha idéia do que era mímica. Achava que era aquele jogo...aquele...


AP: De imagem e ação?

VS: É. Bom, fiz oficinas com ele e depois fui pra São Paulo. Fiquei atrás do Fernando Vieira um tempo... Na época não tinha internet, livros, eram poucos profissionais que necessariamente não eram acessíveis. Era algo muito solitário. Fiquei 9 anos assim, um workshop alí, outro lá, treinando sozinho ou com poucos amigos.
E a partir de mais ou menos de 95 comecei a assinar meu trabalho como mímico e palhaço, essa foi a única herança que carreguei do circo...
Nesse ano estreei meu primeiro trabalho solo, chamava “One clown show!”, dentro da linguagem do palhaço e mímica. Vivi quase exclusivamente deste espetáculo pelo menos 1 ano, viajando São Paulo e interior. Era raro solo de palhaço na época...
Mas chegou um momento que fiquei cansado de subir e descer escada, de parede invisível... queria mudar um pouco, mas não sabia muito para onde ir, isso era meados de 1997/98, quando internet começava a ficar mais acessível e comecei a pesquisar a história da mímica. Era engraçado, percebi que os livros de teatro não citavam a mímica, como se não pertencesse às artes cênicas. Tinha o Marcel Marceau, que era famoso, mas eu não queria mais isso, buscava algo diferente do que eu já vinha fazendo, pois como toda forma estética, esse tipo de mímica tem suas limitações. E aí descobri o Decroux, pai da mímica moderna, mas se tinha disponível poucas informações, nada em português e sempre tudo coberto por uma aura estranha, uma figura emblemática, enigmática.
Quando em 99 vi que aconteceria uma oficina de Mímica Corporal Dramática no ECUM em Belo Horizonte, com a Ana Teixeira e Stephane Brodt da companhia AMOK. Tava meio sem grana, mas consegui pagar o curso e não tinha onde ficar, aí falei com uma amiga de BH, que conseguiu um lugar com outro amigo dela, o Guilherme que gentilmente me hospedou em sua casa, e por acaso descobri depois que ele era um dos organizadores do ECUM. Mas enfim, fiquei fascinado por aquilo, havia duas turmas por dia, manhã e tarde, e eu fiz as duas, eu comecei a fazer de manhã e pedia para assistir à tarde. Por fim eles perguntavam se eu queria fazer e lá ía eu. Ficava morto. Era super-puxado, coisa de 6 horas cada turma. Mas valia a pena.
Quando voltei pra SP tava tão animado que resolvi criar um grupo de estudos. Aí fiquei tentando trazer a Ana Teixeira para sampa, mas era difícil, eu não conseguia juntar gente suficiente. As pessoas não se interessavam pela Mímica Corporal.


AP: Que engraçado porque em Campinas era uma perspectiva até relativamente conhecida nessa época. Bom, por causa do Burnier,é verdade. E depois com o Lume...

VS: É, mas nesta época, talvez fosse uma coisa particular de Campinas... Só que tava tão entusiasmado e o curso foi tão avassalador que montei um espetáculo, o M.C.C.R.E.² , (movimentos comuns e cotidianos repetidos ao extremo e ao quadrado) que estreou no Centro Cultural São Paulo. Hoje vejo o vídeo e acho uma bomba, mas acredito que foi algo bem corajoso de minha parte.
Em 2001 meu pai morreu e aí eu pensei, quando a gente quer fazer algo na vida, tem que fazer logo porque tem pouco tempo para isso. Pesquisei qual seria a melhor escola para se estudar a Mímica Corporal Dramática, mas na hora de pedir indicações todos que tinham um certo conhecimento desconversavam, algo bem estranho, mas foi o Luís Louis quem me confirmou a qualidade da escola na Inglaterra. Vendi tudo que tinha, saí todo endividado e cheguei lá com pouquíssimo dinheiro. Fui em 2001, no meio do apagão elétrico, o Brasil estava em recessão econômica, quebrado, triste, nenhuma perspectiva e sem financiamento nenhum, a libra esterlina valia 6 reais e oitenta centavos, a Escola cobrava 300 libras por mês...
Cheguei lá e tinha de arranjar tudo: casa, trabalho, nessa época até que era mais fácil que hoje por lá, até pela questão do visto. Por fim consegui fazer os 3 anos de formação e cheguei a pensar em ficar mais tempo na escola. Quando acaba o curso se decidir ficar mais um pouco, você é automaticamente convidado a ficar na companhia, mas depois de um treinamento tão intenso acabei preferindo sair e continuar estudando técnicas que completassem minha busca.
Quando saí da escola, saí quase sem voz. O clima era muito rígido. Imagina viver 3 anos só aquela realidade, a vida girava em torno da escola, as amizades, a vida social, tudo, era quase como viver em uma nova família. Mas a escola não tinha e acho que ainda não tem, um trabalho de voz adequado para aquele trabalho corporal. Eu tinha uma rigidez , uma tensão na área abdominal forte, não era algo ruim mas precisava de um trabalho de voz específico. Eu quando estudei teatro na Martins Pena no Rio, conheci só o trabalho convencional de voz, que é aquele normalmente usado pro canto lírico que usa muito o abdômen, o diafragma, projeção para fora. E eu saí da escola com abdômen muito seguro e muita tensão no pescoço, então não conseguia falar. Precisava de técnicas complementares. Acabei indo pro Dance Research Studio, onde eles trabalham sobre a técnica de Alexander .


AP: Mas você foi fazer trabalho de voz numa escola de Alexander?

VS: Voz não era o forte e o principal foco deles, na verdade era uma preocupação minha de me mover, dançar e poder falar, cantar ao mesmo tempo. Fazia mais pelo relaxamento, por um corpo mais solto. E isso me abriu, me “salvou”. Pude reencontrar os órgãos dentro do meu corpo. Cheguei com um corpo, saí com outro corpo. E principalmente me ajudou a des-neurotizar, da pressão psicológica e da rigidez quase militar da escola.
Hoje em dia não uso Alexander no processo de treino, mas foi bom ter passado por ele. É como massagem, não tenho o interesse de estudar como se faz massagem, mas gosto de fazer massagem de vez em quando.
Tem gente que precisa pegar o que lhe interessa para criar algo novo, existem vários espíritos diferentes, o meu já não, não sinto a necessidade de criar algo novo, diferente, me satisfaz conhecer, estudar algo em profundidade, neste caso a Mímica Corporal Dramática, que me foi passada com muito carinho e tenho honra de continuar esse processo, mas não acredito em coisas “sagradas” acredito em legado, em aceitar continuar e desenvolver o estudo.

AP: Mas parece que você fez um espetáculo experimentando vídeo...

VS: Tem duas frentes. Separo as 2 coisas, o Núcleo Angatu e o Projeto Mímicas. No Projeto Mímicas eu estou como educador, pesquisador, mímico corporal, compilando técnica para as próximas gerações, onde também é importante preservar e continuar diálogo com a contemporaneidade, cuidando de não tratar a Mímica Corporal como algo sagrado que não pode ser mudado. Como no Pilates, por exemplo - eu fiz Pilates depois de sair da escola de mímica – hoje o Pilates usa bola, borrachinha, anéis, mas no Pilates original não tinha isso, e no entanto isso é puro Pilates, mesmo o próprio Joseph Pilates não tendo usado. A Mímica Corporal também deve estar em desenvolvimento e dialogar com o contemporâneo. Muitas pessoas da minha geração ainda não sacaram como o mundo está diferente. E teve a primeira geração dos professores que estudaram com o Decroux, eu sou da segunda geração e terá uma terceira, minha geração tem a obrigação de deixar algo para a técnica, não apenas copiar a geração anterior. Então a gente tem que compilar, mas também dialogar com o fazer teatral atual, permitindo que a técnica cresça e continue se desenvolvendo, como no exemplo do Pilates.
Com o Núcleo Angatu nós criamos espetáculos, performances, utilizamos a Mímica Corporal mais como treinamento, formação e acrescentamos outros elementos que forem necessários. No “Darwin”, por exemplo, que é um espetáculo da companhia, tenho um trabalho de pesquisa em que não assino como Mímico Corporal, até porque se usar a palavra mímica, a platéia vai querer ficar tentando adivinhar o que acontece, que não é o caso do espetáculo. E eu mesmo não sei se é dança, teatro físico, teatro gestual, dança-teatro, posso entrar em qualquer edital desses, hoje em dia as bordas da criação estão muito ali uma em cima da outra, esses tempos de multi-formações e multi-informação deixaram todos os limites da criação muito próximos, quando não um sobre o outro, mas ainda existem as especialidades, dança é dança, circo é circo, as especialidades são bem definidas com seus treinamentos bem específicos, mas na hora de criar, esse artista não necessariamente precisa seguir definições, pode navegar, acrescentar, misturar...


AP: Eu fiz algumas aulas de mímica na minha vida. Uma oficina com a Denise Stocklos, uma aula com o Burnier, uns treinos com pessoas que estudaram com o Lume,ficava imitando as segmentações olhando as imagens da tese do Burnier... e achava que a mímica era muito dura. Me lembrava um pouco o balé clássico nesse sentido, onde você tem de ter uma postura um tanto quanto rígida e também achar os encaixes certos. Como se as pessoas tivessem sempre que correr atrás de um corpo padrão que necessariamente não teriam. Mas eu estava vendo uns vídeos, vi Decroux, vi Thomas Leabhart e percebi que eles não têm essa tensão toda, pelo contrário...

VS: Tem uma coisa que é a estética que vem junto com a técnica. Por exemplo a discussão eterna sobre palhaço e clown. Vamos analisar a história: como começou o uso do termo clown no Brasil. Na Inglaterra tinha a escola do Gaulier, e lá se fala inglês, palhaço em inglês é clown, não há mais de um termo para se definir por lá. Aí o cidadão vai estudar com ele, aprende a técnica e leva junto a estética do professor, um cara francês, europeu, nascido no século passado, o aluno fica impregnado pela estética dele que pertence a uma tradição francesa, volta ao seu país e mantêm o termo em inglês para diferenciar seu trabalho, mas no final é tudo a mesma coisa, apenas uma diferença na estética, pois o palhaço brasileiro é muito diferente do palhaço francês, são tradições e culturas diferentes. A estética quase sempre vem junto com a técnica, afinal aprendemos copiando, é algo até natural.
Na escola que fiz a técnica vinha junto com a estética. A rigidez então não está na Mímica Corporal, mas em alguns professores, nós trazemos tudo junto e temos depois que passar por um processo de apropriação.
As próprias peças de repertório são um exemplo disso, podemos encontrar muitas variações sobre esse trabalho do Decroux. Mas aí também entra outra questão que é o intérprete. O Decroux era um leão, uma voz profunda, personalidade maior ainda e isso impregnou suas peças, mas era sua estética.
Uma vez um amigo músico me disse. Eu toco Caetano, mas da minha forma, a minha interpretação sobre a obra dele, não anula a genialidade de Caetano na obra, mas se o imitasse sim, isso mataria a obra.
Isso é importante, a apropriação, não sair imitando e copiando exatamente da forma que você aprendeu, pois o objetivo disso é o treinamento e a parte importante dele é aprender a ter autonomia.
As peças e figuras de repertório não são muito interessantes como espetáculo, mas eu com uma parceira de minha companhia, a Rose Prado, fazemos um espetáculo-demonstração como forma de demonstrar o potencial e apresentar o trabalho criado por Decroux. Para sua criação estudamos as formas que aprendi na escola junto com vídeos antigos do próprio Decroux. Recriamos as peças entre os vídeos antigos e mais novos, dependendo do que encaixava melhor ao nosso corpo. Mas veja bem, agora posso fazer isso, porque estou desde 1999 estudando A Mímica Corporal, por isso me sinto capaz de fazer isso, interpretar é algo natural e necessário, mas recriar já é algo que precisa de experiência...


AP: Na mostra que vocês fazem de mímica em SP tem um momento que é voltado para o corpo brasileiro. Como é essa questão para vocês?

VS: Por enquanto é mais uma preocupação, não uma ação concreta, pelo menos ainda. Durante a Mostra, a gente sempre tenta conhecer mais o trabalho dos convidados. Tem por exemplo o George Macarenhas (Círculo de Mimos- BA). Ele tem a maior produção teórica no Brasil sobre mímica e está sempre na ativa, na prática. Vive em Salvador, dá oficina em Salvador. Aí eu sempre pergunto para ele: mas George, e o corpo baiano? E o corpo negro na mímica? Raramente se vê mímicos negros. Dei aula uma vez para um nativo-brasileiro, mas nunca realmente para alguém negro. Para George já é natural. Segundo ele, movimento é universal . Como na música, a teoria musical é a mesma base para tudo e pode ser usada por qualquer raça, qualquer credo. Tudo bem, é uma linha européia, mas nas mãos dos negros americanos nasceu o jazz... no nordeste criaram o forró...


AP: Mas no caso da mímica você tem uma técnica que pode se transformar numa linguagem. E de repente com a criação no Brasil de espetáculos pode-se estar criando novas linguagens que poderão redundar futuramente numa técnica diferente...

VS: Se não me engano, a viola caipira no interior de Minas é tocada em mi menor. Bom, aí veio no Brasil o guitarrista do Rolling Stones, viu e pegou. Hoje é mais uma opção no modo de tocar rock. Acredito que o trabalho do George vai chegar a modificar a técnica que vai ter que servir àquela cultura. Se uma técnica não serve para uma cultura, joga no lixo. A gente no Projeto Mímicas está tentando ampliar o projeto, conseguir mais verba para chamar grupos de pessoas de danças regionais, capoeira, para ter vários elementos juntos. Transmutando você está preservando. Assim aconteceu com o Pilates, que criou uma forma nova de ver a ginástica. Decroux abriu uma porta, categorizou formas de se articular com o corpo e no espaço. Ele (Decroux) antes de tudo era um anarquista, ligado a movimentos políticos, acredito que ele odiaria ver a Mímica Corporal se transformar em uma “seita”, cheia de seguidores. Por isso que foi tão importante para mim o intercâmbio com o Thomas Leabhart, através dele eu pude conhecer um Decroux filósofo, pensador, diferente do Decroux mestre que tinha conhecido por outros professores.


AP: Nem quando ele voltou de Nova York?

VS: Acho que o Decroux ficou traumatizado depois de Nova York. Tenho uma teoria de que foi pra ele um choque cultural. Logo que o Decroux saiu da Vieux Columbier,as pessoas começaram a ver e se interessar. Nova York na época tava em pleno boom cultural e olhava tudo o que acontecia no mundo para trazer para si, Decroux provavelmente chegou lá e sentiu aquele business todo. Quando voltou, mudou radicalmente, se concentrou em sua pesquisa, evitando grandes apresentações, lecionava apenas no porão da casa dele, na periferia de Paris, onde vivia e por vezes fazia pequenas apresentações no seu estúdio no porão ou na cozinha de sua casa.
As pessoas tinham que ser convidadas para assistir e tinham passar por sua palestra nas sextas feiras, e ele falava muito. Decroux depois de NY passou a desenvolver a sua Mímica Corporal como um artesão.
Por causa da Mostra, a gente vai conhecendo pessoas que tiveram contato em diferentes épocas com Decroux, daí cada um tem uma visão. Decroux era capaz de ficar estudando o braço um mês, dois meses, as vezes ficava obcecado com uma parte do corpo e pesquisava aquilo por um tempo, então você acaba encontrando alguém que estudou só 2 meses com o Decroux e para ele, a Mímica Corporal é só estudos de braços por exemplo. O Decroux que Desmond Jones conheceu por exemplo era diferente do Decroux de meus professores, que já era diferente do Decroux do Thomas... O Marcel Marceau por exemplo estudou com ele num momento em que Decroux estava preocupado com a ilusão, com a forma descritiva, e foi isso que ele levou mais adiante...


AP: Como você explica as diferenças entre mímica descritiva e mímica abstrata?

VS: Na mímica descritiva você descreve o objeto. Na abstrata você se preocupa com o estado, a relação de peso, esforço, o estudo da ação do homem quando interage com o mundo físico. Na mímica descritiva, tem a ilusão de puxar uma corda, o interno não importa, mas o que tá fora, o que está no final da corda, enquanto na abstrata se preocupa com o efeito da ação, do esforço de puxar a corda, a transcrição do meu processo emocional e mental enquanto sofro a ação de puxar a corda. É meio clichê, mas é aquela frase do movimento Balhaus absorvida por Decroux, “tornar visível o invisível”.


AP: E o que diferencia a mímica da dança?

VS: Eu gosto de uma definição de Ana Teixeira em que ela diz que Mímica é tudo o que ser humano faz quando não está dançando, ou seja, é a ação do homem no seu meio, mas você pode me dizer, a dança de hoje também faz isso! Hoje a dança é tão ampla, tão complexa , tem tantas pesquisas. Se eu digo que a mímica trabalha com peso, a dança hoje também. Se digo que trabalha com a articulação, a divisão do corpo em partes, a dança hoje também faz isso. Que só a mímica trabalha com o esforço, com a ação do corpo no mundo, também seria mentira. Então penso na essência de cada especialidade, a dança para ser dança precisa de trabalhar sobre a ação do homem no mundo? Não, a dança pode ter isso, mas não necessariamente precisa disso para ser dança. A mímica precisa. Vou pra essência para achar a diferença.
Tem gente que estuda Mímica Corporal e faz um espetáculo de dança contemporânea e tem gente que estuda Mímica Corporal e faz teatro realista...
Eu acredito também que a Mímica Corporal é uma técnica de treinamento, pode-se fazer experimentos e construir um espetáculo de teatro ou de dança com essa técnica, mas a mímica não é dança porque a dança tem signos fortes.
Outra frase que eu gosto é que a Mímica Corporal faz o ator se mover como um bailarino e bailarino ter a força expressiva de um ator.

AP: Algumas pessoas dizem que com Deburaux a mímica consegue independência. Quando você acha que a mímica adquire esse estatuto independente?

VS:
A mímica é algo natural ao homem, é uma das nossas formas de comunicação. Quando não podemos falar, por exemplo em um país que não dominamos a língua, vamos naturalmente tentar nos comunicar pelos gestos, e sempre esteve presente na história das artes, como por exemplo na Commedia dell´arte que se utilizava da mímica, pois como era apresentada em feiras livres barulhentas e também com aquele monte de dialetos da Itália, os atores acabavam se utilizando de arquétipos e do gestual. Quando comecei a fazer pesquisa de livros sobre mímica, descobri que havia mímica como matéria em algumas escolas de balé, tinha por exemplo o portrato de dor que era assim...(faz gesto colocando dorso da mão sobre a testa). A mímica estava presente no teatro umas épocas, na dança em outras, mas nunca como arte autônoma.
Isso começou na França, com os comediantes italianos em Paris. Havia os teatros nobres, oferecidos para os nobres pelo estado e os Teatros privados, que eram para a povo, nos quais os comediantes italianos se apresentavam. Uma vez houve um espetáculo em que os italianos fizeram piadas de mal gosto com a amante feia do rei. O rei, com raiva, não podendo decapitar nenhum dos artistas, que provavelmente não seria uma medida popular, colocou uma lei dracônica em que nos teatros populares não se poderia mais falar. Foi aí que esses comediantes que carregavam toda uma tradição da Commedia dell´arte, criaram um teatro sem palavras, a pantomima ganhou força como forma autônoma, mas esta performance criada pelos comediantes italianos ainda não tinha técnica, era um estilo que foi sendo copiado, algo bem intuitivo. A técnica específica para a Mímica enquanto forma autônoma só acontece com Decroux.
É importante salientar que a mímica vai além da pantomima, que é um estilo dramático que se utiliza da mímica. Como querer resumir dança apenas pelo balé clássico, que é apenas uma das formas de se dançar.


AP: Como é pra você estar convivendo com o Teatro Ritual durante esses dias?

VS: Fico feliz pelo interesse. Sou um entusiasta da mímica. O problema da Mímica Corporal é que ela não é da cultura do supermercado. Precisa de exercício regular, depende da repetição. Fico feliz que tenham interesse em treinar, em conhecer, e como sou contra reserva de informação, conto tudo, e espero que as pessoas façam bom proveito.
Acho legal que se preocupem realmente com pesquisa. Muitas pessoas adoram falar que fazem pesquisa. Mas em geral ,no fundo, só querem e se preocupam mesmo é com os resultados. O discurso é um, a prática é outra, quando é assim, normalmente querem fazer uma experimentação rápida superficial para chegar num resultado final logo.
Fico feliz de estar em contato com gente que tem pesquisa realmente. Mas mesmo sendo contra a reserva de informação não vou entregando o ouro assim tão fácil, só quando vejo que vai ser bem aproveitado, esse é meu capricho. Se o pessoal quer truques, eu não dou, e aí nas aulas eu “maltrato”. Não é para isso que me dediquei tanto tempo pesquisando e ainda sigo insistindo.
No começo era mais difícil, tinha o estigma da palavra mímica, que se fosse resultado somente da herança da pantomima clássica ainda estava bom, mas tivemos aquela coisa de sombra, algo artisticamente, se é que era artístico, de péssima qualidade.
A mímica exige muito e eu fico feliz em ver grupos de fora de SP com mais tempo para desenvolver trabalhos de qualidade, na verdade são os que mais me interessam. Na Inglaterra, por exemplo, tem poucas coisas interessantes na capital, as companhias mais interessantes e com trabalho mais consistente estão no interior, são grupos que trabalham juntos há mais tempo, que têm mais tempo para pensar, de se conhecer, de refletir, contemplar. Algo que não acontece muito nas grandes capitais, devido a loucura da rotina, é a interação entre artistas, se troca muito pouco por falta de tempo para isso, e vejo muitos grupos buscando apenas “truques”, algo que se aprenda rápido se use por um tempo e depois na mesma velocidade será esquecido...
Algumas vezes, sou chamado para resolver “problemas” para certos grupos, que resolvem fazer um trabalho mais físico em São Paulo, mas esquecem que tudo precisa de tempo e dedicação. Montam o projeto, e quando entram na sala de ensaio percebem que não sabem o que fazer com o corpo... Chama o especialista que ele resolve esse problema!
Por exemplo desta rotina louca, em São Paulo tem algumas unidades do Sesc que só contrata um vez o espetáculo, uma vez, mesmo que você tenha apresentado há dois anos atrás e leve seu projeto, eles dizem, mas você já apresentou esse aqui! Querem um espetáculo infantil novo por ano, e o que você faz com o outro? Joga fora? Isso gera essa cultura de supermercado... Além disso, se quiser ter seu projeto aprovado, você tem que ficar criando projetos mirabolantes com milhares de eventos e atividades para conseguir o dinheiro do patrocínio, se transformando mais em “homem de negócios” que artista.
Acho que o Teatro Ritual tem uma linguagem em comum,qualidades e dificuldades em comum. E isso é muito bom, e principalmente parecem saber o que querem em teatro. Com eles foi a minha primeira turma que em pouco dias de treino quase conseguimos montar uma difícil peça de estudos do repertório chamada “ A Fábrica”, de Decroux, não me lembro de ter ido tão longe com outro grupo.