Fantasma, de Victor de Seixas

Há algumas semanas atrás escutei em uma palestra sobre Jerry Grotowski, uma frase a qual ele dizia: “o exercício para o ator e como escovar os dentes, e muito bom para ele, mas necessariamente não vai fazer-lhe mais expressivo”, retornando da tumba pela boca de outra pessoa, Grotowski veio me assombrar, fiquei com esta frase na cabeça durante vários dias, porque? Atualmente dedico a maior parte do meu tempo, posso dizer até alguns anos de minha vida, exclusivamente a aprender a fundo à mímica corporal dramática, técnica essa desenvolvida por Etienne Decroux, e hoje ensinada por poucos de seus ex-assistentes, uma técnica baseada em intensos exercícios físicos e repetição de formas e movimentos pela imitação, parei e comecei a perguntar a mim mesmo: estaria eu apenas a “escovar os meus dentes?”.
O cérebro humano tem a tendência à “automatizar” movimentos físicos repetidos com freqüência, para facilitar nossas vidas, usando menos energia e concentração em práticas cotidianas deixando espaço para outras funções mais utilidade, por isso depois de três anos trabalhando duro, repetindo centenas de vezes seqüências de movimentos, formas e outros exercícios eu me tornei na escola para meus professores um “bom mímico”, isto é não penso mais antes de fazer os exercícios propostos, sinto uma melhora na minha coordenação, tenho mais controle sobre meus movimentos, consigo isolar os diferentes músculos para diferentes ações, enfim, tenho mais controle sobre meus movimentos e minha movimentação no espaço, mais isso não significa que eu tenha me tornado um mais expressivo.
Um pianista depois de dedicar anos repetindo escalas e estudando por várias vezes exercícios repetitivos e às vezes monótonos, não pensa antes de pressionar a tecla do piano, e muito menos faz isso com dificuldade, para ele é automático o movimento de suas mãos em relação à posição das teclas do piano, mas este fato não o faz menos expressivo, dentro do movimento “automático” ele tem várias maneiras de tocar a mesma nota, mudando completamente o resultado final imprimindo sua interpretação a obra.
O que vai diferenciar os movimentos “automáticos” e “orgânicos”, será então a sua relação com o que você está fazendo ou tentando expressar, o velho chavão de “estar presente” no momento, dando um sentido lógico ou abstrato, mas importante dando um sentido ao movimento.
Quando o ator treina fisicamente sem ser para um espetáculo ou show, não é sempre possível manter a organicidade, como um músico iniciante treinando com seu instrumento, ele provavelmente deseja se aprimorar para tocar em público está aprimorando sua técnica para depois compor ou interpretar músicas de outro autor, mas primeiro ele precisa que seus movimentos se tornem “automáticos” em relação ao instrumento, isto é repetir, repetir, para depois aplicar sua interpretação pessoal, e da mesma forma o ator depois de qualquer treino técnico tem que no final aplicar os resultados de seu treino de uma forma expressiva, pois senão o exercício corre o risco de se tornar apenas uma ginástica.
Dentro do treino que estou agora, muitos alunos no desejo de aprovação pelo núcleo social da escola se dedicam na tentativa de se tornar um “bom mímico” aos olhos dos professores ou do pequeno meio social a sua volta, criando uma armadilha sem saída, os que não conseguem a aprovação desejada, tem sua auto-estima destruída, mesmo tendo ganho muito expressivamente com a técnica, e os que por ventura conseguem o reconhecimento desejado, tornando-se “bons mímicos”, quando se terminado o processo de estudos, afastados deste pequeno meio social, a escola, ficam perdidos, pois o que o “bom mímico” faz com esta técnica, sem a estrutura hierárquica da escola? A tendência é cair em uma mistificação de Decroux e da técnica como algo sagrado e hermético, esvaziando o objetivo principal que e aprimorar a expressividade do ator.
Para se trabalhar com qualquer técnica física para o ator, há a necessidade de manter os objetivos fundamentais claros, sem mistificações ou elitismos, que é aprimorar sua expressividade, depois entrando outra questão tão importante se não a mais importante de todas, que é o que você quer dizer através da técnica que esta estudando.
De nada adianta um pianista virtuoso com um repertório pobre, nada adianta ter uma técnica estupenda, uma voz maravilhosa se não temos nada a dizer, e isso muita gente esquece esvaziando qualquer técnica, linha ou teoria, pois a escolha do caminho dentro do teatro tem que estar em função da nossa ideologia, não para enobrecimento ou status por ter estudado esta linha ou outra, mas para melhorar o meio de expressão, e assim dizer mais claramente o que pensamos…

(Gentilmente cedido por Victor de Seixas, escrito em abril de 2004.)

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