Durante o treinamento do Teatro Ritual com Victor Seixas foram dedicados alguns momentos para o convívio com a neutralidade. Cada um dos atores punha um pano branco cobrindo a cabeça e empreendiam exercícios de improvisação dentro de alguma situação ou com regras específicas. Resolvi então relembrar o que para mim é crucial no tema.
A questão da neutralidade parece ter sido considerada importante para o trabalho do ator ocidental a partir de Copeau. Em 1913 este já havia lançado em manifesto sua posição contrária ao naturalismo. Contra a parafernália de janelas, balcões, armários, camas que entulhavam o espaço cênico naturalista e impediam a expressão corporal do ator, Copeau pregava o “palco nu”. Depois da Primeira Guerra Mundial, com a fundação da École du Vieux Colombier, começa a usar máscaras neutras, um verdadeiro achado na preparação para a atuação nos palcos dos novos tempos(1).
Nas máscaras neutras, os traços costumam ser regulares, não realísticos e trazem a ausência de emoção. Como a abundância de detalhes não é legível à distância, os contornos da máscara devem ser precisos. O trabalho do escultor unido ao do ator pode dar relevância a determinadas angulações, oferecendo assim diferenciadas facetas à expressão.
O peso da máscara deve ser moderado e é importante que dure. Existem, por exemplo, modelos de papier machê e de couro. Em relação a esta última, é considerada de melhor qualidade pois se adequa melhor ao rosto com o decorrer do tempo. Como se diz: não se veste uma máscara, se “calça” uma máscara, tal deve ser integração máscara-rosto-interpretação. Um importante confeccionador foi Sartori, que fez máscaras neutras para Lecoq, frequentemente com par de linhas que definia o nariz e que continuavam para cima formando a linha das sobrancelhas, parecendo abstratas para quem as via (2).
Nos processos com a máscara geralmente os aprendizes/alunos são informados com relação ao ritual de respeito para com ela. Deve-se, por exemplo, evitar pôr a mão diretamente na máscara, devendo-se segurá-la pelo topo, pela base ou pelos lados, mas nunca no nariz ou nos olhos. Para colocar ou retirar a máscara, deve-se virar de costas para o público. Falar com a máscara inteira sobre o rosto, nem pensar, é preciso que o ator retire a máscara para fazê-lo.
Mas o que seria a neutralidade propiciada através do trabalho com a máscara neutra? Trata-se da busca do ator de libertar-se de seus próprios hábitos, de seus movimentos corriqueiros, do mecanismo no qual de alguma forma alicerçou sua personalidade - seja por influência genética, da cultura, das pressões sociais ou de sua estrutura psicológica.
A princípio, poder-se-ia pensar que o trabalho com a máscara deixe o ator tranquilo, já que ele se sentiria escondido, o que se descobre ser um engano em seguida. Ao esconder o rosto, a máscara tira a parte do corpo na qual o ator está mais acostumado a se apoiar, de modo que este se sente como que nu, exposto de uma forma como talvez nunca tenha experimentado antes.
No início do processo com a máscara, é comum que o ator imponha um caráter ao movimento, que desenvolva formas estereotipadas e faça gestos condicionados, o que muitas vezes acontece sem que ele o perceba. Se o peito, por exemplo, estiver involuntariamente afundado, poderá expressar fadiga ou astúcia, e se expandido, orgulho. Exercícios de consciência corporal são por isso extremamente necessários. Na Vieux Colombier Copeau usava acrobacia, ballet clássico e método rítmico de Dalcroze. Hoje em dia a educação somática também pode e deve contribuir muito neste sentido. A preparação corporal ajuda no condicionamento, numa melhor desenvoltura das articulações do corpo, na abertura para as sensações despertadas pelo movimento do corpo no espaço, ajudando o ator a perceber a importância do corpo todo na atuação.
A “via negativa” também é uma metodologia comumente escolhida por professores que trabalham com a máscara e consiste em dizer aos alunos não o que fazer, mas o que não devem fazer. Assim, o ator é sempre obrigado a superar um obstáculo, a achar outra saída. Desprotegido e só possuindo o corpo para se expressar, o ator tem as qualidades de seus movimentos percebida por todos e por ele mesmo, consciência essa que vai aumentando com o tempo. Como não existem modelos, o ator deve descobrir a neutralidade nele mesmo. E como cada corpo e história pessoal são diferentes, as neutralidades são diferentes.
Ao contrário do que muitos pensam para a neutralidade, silêncio e imobilidade correspondem apenas a determinados momentos na máscara neutra. Esta pode permitir grande velocidade e várias qualidades de movimento dentro de um exercício de improvisação. No entanto, é preciso calma e receptividade para pôr a máscara. Lecoq, por exemplo, fazia com que o ator ficasse olhando a máscara por 8 dias, antes de colocá-la, talvez prática inspirada no teatro oriental (3), onde em algumas tradições ao ator é dado inclusive o trabalho de achar a árvore da qual retirará a sua máscara.
Assim, silêncio, imobilidade, neutralidade dentro de si seriam qualidades imprescindíveis para este momento inicial, antes de colocar e ao colocar a máscara. Deve-se permitir que respiração, pensamento e atitude sejam mudados pela máscara. Já no estado de neutralidade como um todo, é preciso que reine a economia - todo movimento gratuito deve ser eliminado, pois é um erro de distração provocado pela ansiedade. Tomam lugar energia e ritmo no espaço e tempo apropriados que determinada ação requer. O ator deixa que apareça o movimento ao invés de ele mesmo aparecer.
Alguns falam da percepção de uma segunda pessoa no corpo familiar. Despido, o ator tem apagada a sua persona social através do estado de atenção e consciência que mantém durante o uso da máscara neutra. Este já não pensa no que fará no momento seguinte, movimento tão comumente captado pelo público quando assiste a uma apresentação. A perda da persona social ajuda na desinibição e nada mais impediria o ator de estar completamente livre numa improvisação. Desse modo, o despojamento do “palco nu” de Copeau se transfere para o uso da máscara.
No Teatro Nô é importante o palco vazio e despojado como o jardim de um templo Zen. Aos poucos esse palco vai sendo povoado por deuses e espíritos, vozes, sons, presenças invisíveis e visíveis. Como uma xícara que não pode estar cheia para ser receptáculo. A metáfora do palco vazio, que em Copeau seria o “palco nu”, deve ser transferida para o ator, que precisa se despojar de suas próprias opiniões, pois só um espírito livre e vazio é receptivo. E assim, paradoxalmente, o que poderia parecer redundar num vazio tedioso se torna um vazio pleno e a capacidade expressiva do ator se multiplica.
Obs: Beth Lopes comentou em sua tese de doutorado a respeito das máscaras, que estas podem provocar transes. Diz que uma vez pôs uma máscara de Pantaleão e saiu pela rua, quase se perdendo de si mesma e de sua persona social. A importância dos rituais que demonstrem respeito para com a máscara e seu uso podem ajudar muito a evitar esse tipo de situação, pois colaboram inclusive para diferenciar bem o momento em que se põe e o momento em que se tira uma máscara. Para evitar mal-entendidos, preconceitos e erros no uso e também ter a preparação adequada com a máscara neutra, é extremamente importante a presença de um condutor minimamente preparado para tal.
(1) A máscara neutra era usada por Copeau como preparação para atuação no teatro não mascarado.
Pode-se também utilizar a máscara neutra como preparação para uso de máscaras expressivas, a exemplo da meia-máscara de Commedia dell´Arte e a chamada “menor máscara do mundo”, o nariz do clown/palhaço.
(2) Entre as máscaras neutras, a de Mazzone-Clementi era mais “metafísica” e abstrata , sendo definida apenas por uma linha central , outra nas sobrancelhas, um olho em forma de círculo e outro com forma de triângulo.
Máscaras neutras também chegam a ser usadas em cena, a exemplo das máscaras das tragédias encenadas por Saint Denis.
(3) Para Copeau, um dos três elementos fundamentais para a recuperação da arte do ator era o estudo do teatro japonês - Nô e Kabuki. Os outros dois eram o espaço do teatro grego e a improvisação da Commedia Dell’Arte.
A questão da neutralidade parece ter sido considerada importante para o trabalho do ator ocidental a partir de Copeau. Em 1913 este já havia lançado em manifesto sua posição contrária ao naturalismo. Contra a parafernália de janelas, balcões, armários, camas que entulhavam o espaço cênico naturalista e impediam a expressão corporal do ator, Copeau pregava o “palco nu”. Depois da Primeira Guerra Mundial, com a fundação da École du Vieux Colombier, começa a usar máscaras neutras, um verdadeiro achado na preparação para a atuação nos palcos dos novos tempos(1).
Nas máscaras neutras, os traços costumam ser regulares, não realísticos e trazem a ausência de emoção. Como a abundância de detalhes não é legível à distância, os contornos da máscara devem ser precisos. O trabalho do escultor unido ao do ator pode dar relevância a determinadas angulações, oferecendo assim diferenciadas facetas à expressão.
O peso da máscara deve ser moderado e é importante que dure. Existem, por exemplo, modelos de papier machê e de couro. Em relação a esta última, é considerada de melhor qualidade pois se adequa melhor ao rosto com o decorrer do tempo. Como se diz: não se veste uma máscara, se “calça” uma máscara, tal deve ser integração máscara-rosto-interpretação. Um importante confeccionador foi Sartori, que fez máscaras neutras para Lecoq, frequentemente com par de linhas que definia o nariz e que continuavam para cima formando a linha das sobrancelhas, parecendo abstratas para quem as via (2).
Nos processos com a máscara geralmente os aprendizes/alunos são informados com relação ao ritual de respeito para com ela. Deve-se, por exemplo, evitar pôr a mão diretamente na máscara, devendo-se segurá-la pelo topo, pela base ou pelos lados, mas nunca no nariz ou nos olhos. Para colocar ou retirar a máscara, deve-se virar de costas para o público. Falar com a máscara inteira sobre o rosto, nem pensar, é preciso que o ator retire a máscara para fazê-lo.
Mas o que seria a neutralidade propiciada através do trabalho com a máscara neutra? Trata-se da busca do ator de libertar-se de seus próprios hábitos, de seus movimentos corriqueiros, do mecanismo no qual de alguma forma alicerçou sua personalidade - seja por influência genética, da cultura, das pressões sociais ou de sua estrutura psicológica.
A princípio, poder-se-ia pensar que o trabalho com a máscara deixe o ator tranquilo, já que ele se sentiria escondido, o que se descobre ser um engano em seguida. Ao esconder o rosto, a máscara tira a parte do corpo na qual o ator está mais acostumado a se apoiar, de modo que este se sente como que nu, exposto de uma forma como talvez nunca tenha experimentado antes.
No início do processo com a máscara, é comum que o ator imponha um caráter ao movimento, que desenvolva formas estereotipadas e faça gestos condicionados, o que muitas vezes acontece sem que ele o perceba. Se o peito, por exemplo, estiver involuntariamente afundado, poderá expressar fadiga ou astúcia, e se expandido, orgulho. Exercícios de consciência corporal são por isso extremamente necessários. Na Vieux Colombier Copeau usava acrobacia, ballet clássico e método rítmico de Dalcroze. Hoje em dia a educação somática também pode e deve contribuir muito neste sentido. A preparação corporal ajuda no condicionamento, numa melhor desenvoltura das articulações do corpo, na abertura para as sensações despertadas pelo movimento do corpo no espaço, ajudando o ator a perceber a importância do corpo todo na atuação.
A “via negativa” também é uma metodologia comumente escolhida por professores que trabalham com a máscara e consiste em dizer aos alunos não o que fazer, mas o que não devem fazer. Assim, o ator é sempre obrigado a superar um obstáculo, a achar outra saída. Desprotegido e só possuindo o corpo para se expressar, o ator tem as qualidades de seus movimentos percebida por todos e por ele mesmo, consciência essa que vai aumentando com o tempo. Como não existem modelos, o ator deve descobrir a neutralidade nele mesmo. E como cada corpo e história pessoal são diferentes, as neutralidades são diferentes.
Ao contrário do que muitos pensam para a neutralidade, silêncio e imobilidade correspondem apenas a determinados momentos na máscara neutra. Esta pode permitir grande velocidade e várias qualidades de movimento dentro de um exercício de improvisação. No entanto, é preciso calma e receptividade para pôr a máscara. Lecoq, por exemplo, fazia com que o ator ficasse olhando a máscara por 8 dias, antes de colocá-la, talvez prática inspirada no teatro oriental (3), onde em algumas tradições ao ator é dado inclusive o trabalho de achar a árvore da qual retirará a sua máscara.
Assim, silêncio, imobilidade, neutralidade dentro de si seriam qualidades imprescindíveis para este momento inicial, antes de colocar e ao colocar a máscara. Deve-se permitir que respiração, pensamento e atitude sejam mudados pela máscara. Já no estado de neutralidade como um todo, é preciso que reine a economia - todo movimento gratuito deve ser eliminado, pois é um erro de distração provocado pela ansiedade. Tomam lugar energia e ritmo no espaço e tempo apropriados que determinada ação requer. O ator deixa que apareça o movimento ao invés de ele mesmo aparecer.
Alguns falam da percepção de uma segunda pessoa no corpo familiar. Despido, o ator tem apagada a sua persona social através do estado de atenção e consciência que mantém durante o uso da máscara neutra. Este já não pensa no que fará no momento seguinte, movimento tão comumente captado pelo público quando assiste a uma apresentação. A perda da persona social ajuda na desinibição e nada mais impediria o ator de estar completamente livre numa improvisação. Desse modo, o despojamento do “palco nu” de Copeau se transfere para o uso da máscara.
No Teatro Nô é importante o palco vazio e despojado como o jardim de um templo Zen. Aos poucos esse palco vai sendo povoado por deuses e espíritos, vozes, sons, presenças invisíveis e visíveis. Como uma xícara que não pode estar cheia para ser receptáculo. A metáfora do palco vazio, que em Copeau seria o “palco nu”, deve ser transferida para o ator, que precisa se despojar de suas próprias opiniões, pois só um espírito livre e vazio é receptivo. E assim, paradoxalmente, o que poderia parecer redundar num vazio tedioso se torna um vazio pleno e a capacidade expressiva do ator se multiplica.
Obs: Beth Lopes comentou em sua tese de doutorado a respeito das máscaras, que estas podem provocar transes. Diz que uma vez pôs uma máscara de Pantaleão e saiu pela rua, quase se perdendo de si mesma e de sua persona social. A importância dos rituais que demonstrem respeito para com a máscara e seu uso podem ajudar muito a evitar esse tipo de situação, pois colaboram inclusive para diferenciar bem o momento em que se põe e o momento em que se tira uma máscara. Para evitar mal-entendidos, preconceitos e erros no uso e também ter a preparação adequada com a máscara neutra, é extremamente importante a presença de um condutor minimamente preparado para tal.
(1) A máscara neutra era usada por Copeau como preparação para atuação no teatro não mascarado.
Pode-se também utilizar a máscara neutra como preparação para uso de máscaras expressivas, a exemplo da meia-máscara de Commedia dell´Arte e a chamada “menor máscara do mundo”, o nariz do clown/palhaço.
(2) Entre as máscaras neutras, a de Mazzone-Clementi era mais “metafísica” e abstrata , sendo definida apenas por uma linha central , outra nas sobrancelhas, um olho em forma de círculo e outro com forma de triângulo.
Máscaras neutras também chegam a ser usadas em cena, a exemplo das máscaras das tragédias encenadas por Saint Denis.
(3) Para Copeau, um dos três elementos fundamentais para a recuperação da arte do ator era o estudo do teatro japonês - Nô e Kabuki. Os outros dois eram o espaço do teatro grego e a improvisação da Commedia Dell’Arte.
22 de dezembro de 2012 às 21:51
Texto muito bom! Fluido, claro, objetivo. Também tenho um blog onde escrevo textos sobre teatro: www.lunaticco.blogspot.com
Visite-me! Abraço.
Guilherme, Fortaleza-Ce.