Como o Teatro Ritual está em processo de montagem de “Qqiss?!”, espetáculo de palhaços, aproveito o ensejo para falar da minha convivência com essa história de palhaço.
Neste ano ela recomeçou com a oficina de Pepe Nuñez, palhaço que veio dar um curso em Goiânia através do Grupo Bastet. Pepe sempre fazia as rodas de conversa no início de cada dia. Lembro-me que teve um em que surgiu a polêmica:
O palhaço pode ser ator?
O ator pode ser palhaço?
Um dos participantes já sofrendo muito: mas eu quero continuar sendo ator, eu não quero ser só palhaço!
Confesso que eu também sempre tive as minhas dúvidas. E também certezas duvidosas. Por exemplo em relação à diferença entre palhaço e clown. Na minha época como estudante de artes cênicas, eu reverenciava o trabalho de Luís Otávio Burnier e os clowns de Ricardo Pucceti e de Simione. Para mim, estes eram os verdadeiros clowns nascidos da tradição francesa. Ora, Burnier havia desde os 17 anos viajado para a Europa. Lá estudou por exemplo a mímica de Ettiène Decroux e trouxera consigo uma bagagem inclusive de preparação de clowns.
Falava-se da diferença entre o palhaço e o clown e o que eu guardara comigo é que o palhaço brasileiro e o palhaço de circo teriam mais a ver com o bufão, enquanto que o clown era mais lírico e que o pretendente a ser clown deveria expôr as suas dificuldades pessoais, as suas fragilidades, senão não teria sucesso, ou melhor, não fracassaria para ser amado. Seria um bom objetivo de vida, valeria a pena ficar horas treinando para tal...Não devia ser à toa que Ricardo e Simione passavam horas infindáveis trabalhando em sala.
Em determinado momento comecei a me interessar pelo clown trágico. Começou assim: em meio à lista de filmes que o Ricardo Pucceti indicava para a pesquisa do clown, eu assistira “O homem da linha” (http://www.youtube.com/watch?v=pOevVj9IwXE ) e “ O ilusionista” (http://www.youtube.com/watch?v=9un7Y6n8hdo ), filmes com clowns franceses. Sim, eu já havia assistido grande parte do resto da lista com Gordo e o Magro, Jacques Tati, Julieta Masina...Ficara dias detida diante dos filmes de Chaplin em câmera lenta para conseguir ter maior dimensão de quem era esse gênio – e então me deparei com “O ilusionista”. Choque inesquecível.
Lembro que numa cena dentro do Hospital Psiquiátrico, havia uma pessoa parecida com um médico lendo um livro numa mesa. Ao lado, um quadro de Freud. De repente o médico se revela paciente e ataca com facadas o quadro de Freud. Neste filme os clowns não usavam nariz vermelho, mas os personagens em geral poderiam ser caracterizados como clowns. No início do filme, o picadeiro - de que Burnier falava em sua pesquisa acadêmica e tão comentado quando se falava a respeito dos retiros de clown com o Lume – se abria quando o clown, depois de se maquiar, abre uma porta e dá de cara com o público grotesco do circo esperando para rir. No entanto, quando o clown pega o microfone, este falha. Em outra cena, o clown mata a própria mãe sem saber, quando resolve fazer a brincadeira da velha caixa de facas circense.
Em meio aos filmes escolhia obras de Beckett para fazer meu trabalho escrito. Havia ouvido falar que o teatro do absurdo de Beckett continha personagens e situações clownescas.Já havia lido “Esperando Godot” para a minha prova de aptidão e naquele outro momento podia rever novas situações clownescas para o sapato e o chapéu. A fragilidade graçava naqueles seres do pós-guerra de Beckett: pobreza, esquecimento, impossibilidade de comunicação entre seres humanos na linguagem estruturada em trocadilhos que não levava a lugar algum. O nonsense presente na sociedade pós-guerra: uma outra perspectiva para o clown.
Estava tão impregnada de todas essas coisas que lembro vividamente do dia em que assisti a um espetáculo de Ricardo e Simione, só os dois com seus clowns. Comecei a ver naquele espetáculo de clowns toda uma tragicidade: a efemeridade da vida, as pessoas reveladas através dos clowns e no que eram mais frágeis, a incomunicabilidade entre os seres...Na época, que eu me lembre, Burnier havia falecido há pouco tempo. Genial! Sensível! Autêntico! Quase um espetáculo psicológico a considerar pelas ações e reações daqueles dois! O clown, o palhaço lírico, se concretizava naquele espetáculo, naqueles caras.
As pessoas em volta em grande parte riam, enquanto eu chorava bastante e emocionada me encaminhava para o camarim para parabenizá-los. Me sentia privilegiada por ter presenciado aquilo e mesmo que a minha imaginação tivesse levado tão longe em interpretações das quais eles nem faziam idéia, percebi que isso também só acontecera porque havia um espaço ali que eu podia preencher e que cada um dos espectadores deve ter preenchido a seu modo.
Se é possível ser ator e ser palhaço? É mesmo, havia essa questão...
Andrea Pita
Neste ano ela recomeçou com a oficina de Pepe Nuñez, palhaço que veio dar um curso em Goiânia através do Grupo Bastet. Pepe sempre fazia as rodas de conversa no início de cada dia. Lembro-me que teve um em que surgiu a polêmica:
O palhaço pode ser ator?
O ator pode ser palhaço?
Um dos participantes já sofrendo muito: mas eu quero continuar sendo ator, eu não quero ser só palhaço!
Confesso que eu também sempre tive as minhas dúvidas. E também certezas duvidosas. Por exemplo em relação à diferença entre palhaço e clown. Na minha época como estudante de artes cênicas, eu reverenciava o trabalho de Luís Otávio Burnier e os clowns de Ricardo Pucceti e de Simione. Para mim, estes eram os verdadeiros clowns nascidos da tradição francesa. Ora, Burnier havia desde os 17 anos viajado para a Europa. Lá estudou por exemplo a mímica de Ettiène Decroux e trouxera consigo uma bagagem inclusive de preparação de clowns.
Falava-se da diferença entre o palhaço e o clown e o que eu guardara comigo é que o palhaço brasileiro e o palhaço de circo teriam mais a ver com o bufão, enquanto que o clown era mais lírico e que o pretendente a ser clown deveria expôr as suas dificuldades pessoais, as suas fragilidades, senão não teria sucesso, ou melhor, não fracassaria para ser amado. Seria um bom objetivo de vida, valeria a pena ficar horas treinando para tal...Não devia ser à toa que Ricardo e Simione passavam horas infindáveis trabalhando em sala.
Em determinado momento comecei a me interessar pelo clown trágico. Começou assim: em meio à lista de filmes que o Ricardo Pucceti indicava para a pesquisa do clown, eu assistira “O homem da linha” (http://www.youtube.com/watch?v=pOevVj9IwXE ) e “ O ilusionista” (http://www.youtube.com/watch?v=9un7Y6n8hdo ), filmes com clowns franceses. Sim, eu já havia assistido grande parte do resto da lista com Gordo e o Magro, Jacques Tati, Julieta Masina...Ficara dias detida diante dos filmes de Chaplin em câmera lenta para conseguir ter maior dimensão de quem era esse gênio – e então me deparei com “O ilusionista”. Choque inesquecível.
Lembro que numa cena dentro do Hospital Psiquiátrico, havia uma pessoa parecida com um médico lendo um livro numa mesa. Ao lado, um quadro de Freud. De repente o médico se revela paciente e ataca com facadas o quadro de Freud. Neste filme os clowns não usavam nariz vermelho, mas os personagens em geral poderiam ser caracterizados como clowns. No início do filme, o picadeiro - de que Burnier falava em sua pesquisa acadêmica e tão comentado quando se falava a respeito dos retiros de clown com o Lume – se abria quando o clown, depois de se maquiar, abre uma porta e dá de cara com o público grotesco do circo esperando para rir. No entanto, quando o clown pega o microfone, este falha. Em outra cena, o clown mata a própria mãe sem saber, quando resolve fazer a brincadeira da velha caixa de facas circense.
Em meio aos filmes escolhia obras de Beckett para fazer meu trabalho escrito. Havia ouvido falar que o teatro do absurdo de Beckett continha personagens e situações clownescas.Já havia lido “Esperando Godot” para a minha prova de aptidão e naquele outro momento podia rever novas situações clownescas para o sapato e o chapéu. A fragilidade graçava naqueles seres do pós-guerra de Beckett: pobreza, esquecimento, impossibilidade de comunicação entre seres humanos na linguagem estruturada em trocadilhos que não levava a lugar algum. O nonsense presente na sociedade pós-guerra: uma outra perspectiva para o clown.
Estava tão impregnada de todas essas coisas que lembro vividamente do dia em que assisti a um espetáculo de Ricardo e Simione, só os dois com seus clowns. Comecei a ver naquele espetáculo de clowns toda uma tragicidade: a efemeridade da vida, as pessoas reveladas através dos clowns e no que eram mais frágeis, a incomunicabilidade entre os seres...Na época, que eu me lembre, Burnier havia falecido há pouco tempo. Genial! Sensível! Autêntico! Quase um espetáculo psicológico a considerar pelas ações e reações daqueles dois! O clown, o palhaço lírico, se concretizava naquele espetáculo, naqueles caras.
As pessoas em volta em grande parte riam, enquanto eu chorava bastante e emocionada me encaminhava para o camarim para parabenizá-los. Me sentia privilegiada por ter presenciado aquilo e mesmo que a minha imaginação tivesse levado tão longe em interpretações das quais eles nem faziam idéia, percebi que isso também só acontecera porque havia um espaço ali que eu podia preencher e que cada um dos espectadores deve ter preenchido a seu modo.
Se é possível ser ator e ser palhaço? É mesmo, havia essa questão...
Andrea Pita
Postar um comentário